FANTASMAS
Gélida, a série Inox de Jorge Molder não deriva o seu nome de nenhuma alusão metálica e reflectora (embora a inferência seja possível), mas de uma contracção de Inocêncio X, o Papa que Velázquez retratou, feericamente terrível, numa pintura que foi glosada por Francis Bacon, ainda – se possível – com maior violência.
Molder tem um fascínio também por Bacon, como pela frase que o próprio Papa sibilinamente proferiu quando viu o seu retrato pintado pelo espanhol: “Troppo vero”.
A frase, aliás, serve de título a uma outra série de fotografias de Jorge Molder, TV, num jogo de sentidos dentro de outros sentidos, numa mise en abîme que é a sua metodologia habitual.
O método criativo de Molder, no uso quase permanente de si próprio como modelo das suas imagens, assenta na construção de narrativas de contornos difusos, carregadas de referências, alusões, citações a outros fotógrafos (como Paul Outerbridge ou Bill Brandt). Na teia de relações que convoca cruza-se uma galeria de autores com os quais Molder define um mundo complexo, por vezes quase gótico: Dostoyevsky, E. T. A. Hoffman, Poe, Kafka, Melville, Perec, Gombrowicz, o cinema de Fritz Lang e uma recorrência da figura do duplo, do doppelgänger, foram construindo um enorme puzzle no qual não se descortina um sentido, mas uma pulverização de caminhos que se tecem infindavelmente.
Assim, o uso de si mesmo não faz as suas imagens pertencerem ao campo do auto-retrato, porque em nenhum caso (ou quase), existe uma procura de se representar, mas o recurso ao seu corpo para construir personagens, mostrar metamorfoses, processos de transformação.
As personagens de Molder são fantasmas que assombram o mundo das imagens, por vezes ecos de outros fantasmas que povoaram outros mundos (dos textos ou das imagens em movimento) e que sobreviveram para que nós, perdidos nesses outros que nos assombram, possamos indagarmo-nos um pouco mais, um pouco mais terrivelmente, sobre o nosso lugar, do lado de cá das suas imagens.
Delfim Sardo