“O primeiro grupo de trabalhos produzidos por Iberê reúne as peças datadas de 1960 e 1961, que foram realizadas com o acompanhamento da ceramista Luiza Prado. As tintas usadas no processo de pintura em porcelana são à base de minerais, suas cores e texturas são modificadas quando submetidas ao forno, e a temperatura e o tempo de queima têm que ser exatos. Assim, os conhecimentos técnicos são indispensáveis para produzir esse trabalho.
[...]
O terceiro tema, raro na obra de Iberê, são animais, que ele pinta magistralmente, ocupando toda a superfície dos pratos e usando cores marcantes. Sucedem-se o galope do cavalo, as nadadeiras do peixe, o arrepio esgarçado do gato, o bater das asas do pássaro e o longo rabo do rato, que é impossível não relacionar com o aterrorizante conto O rato, escrito por Iberê. Em algumas peças, o artista imprime ritmo e dinamismo com o uso do scratch, o risco seco, a retirada da tinta com o cabo do pincel, técnica que, até então, usara pouco, mas que viria a tornar-se uma marca de sua pintura. [...]
Ainda no início da década de 1960, Luiza Prado deixa Porto Alegre e Iberê retoma a produção de cerâmicas com Marianita Linck.”
MATTAR, Denise. In: POSSAMAI, Gustavo (Org.). Iberê Camargo: o fio de Ariadne. Fundação Iberê Camargo: Porto Alegre, 2020. p. 13-14. (Observar notas na fonte).
"[...] É visível que nos pratos de Iberê são recorrentes as representações de animais. Este dado adquire um novo interesse nos últimos anos, nos quais é analisada a relação entre o universo humano e o animal. Uma maneira de colocar em crise a preeminência do humano, cujo domínio leva à destruição da natureza, à ameaça do planeta. Num certo sentido, nessa presença animal, principalmente de felinos, podem se tornar significativas as leituras vinculadas aos afetos e ao pós-humano. Embora Iberê não tenha se envolvido com o debate que desierarquiza o humano para colocá-lo em um mesmo plano com os objetos inanimados, essa percepção está latente nas séries e nas iconografias que adota na produção de sua cerâmica.
[...] As séries cerâmicas e têxteis de Iberê Camargo contribuíram para a transformação das hierarquias entre as linguagens da arte. Essa abertura foi central para o processo que hoje permite usos inesperados e deslumbrantes da cerâmica e do tecido."
GIUNTA, Andrea. Da trama e da lama.
Iberê Camargo e a transformação das hierarquias das linguagens da arte. In: POSSAMAI, Gustavo (Org.). Iberê Camargo: o fio de Ariadne. Fundação Iberê Camargo: Porto Alegre, 2020. p. 27-28.
"O rato" foi escrito por Iberê Camargo e publicado em 1988 pela editora L&PM no livro "No andar do tempo: 9 contos e um esboço autobiográfico":
O rato
"Meneando a cabeça sobre o travesseiro, Terêncio abre a boca, range os dentes, estala a língua e bufa. O rosto faz-se violáceo. Deitado sobre o dorso, seminu, braços cruzados sob a cabeça, pernas encolhidas, não sente o corpo. Uma dormência o invade, como um anestésico.
Os dentes, um intrincado de ossos amolecidos, desenraizados de seus alvéolos, se adelgaçam, se alongam e escorrem-lhe da boca. Terêncio, horrorizado, introduz os dedos na boca, para fixá-los aos maxilares. Quer falar, mas não consegue articular palavra. A língua seca lhe cola ao palato.
Um guincho estridente ressoa aos seus ouvidos. Terêncio estremece. Sobressaltado, arregala os olhos: acorda do pesadelo.
À frente, uma janela se abre por uma noite escura. Um bafo quente invade o quarto e envolve as coisas. O céu não tem estrelas. Os guinchos se sucedem cada vez mais estridentes e, agora, misturados com um rumor de água agitada. “Que será?”, ele se pergunta. Sobre a mesa, ainda se lambe um toco de vela que rabisca sombras na parede. O rumor continua. Terêncio tem o corpo insensível. Não pode se mover. Procura erguer-se, mas seus membros entorpecidos não obedecem, parece que não pertencem mais ao corpo. Para vencer o torpor, rola na cama. Finalmente, consegue erguer-se e sentar-se à sua borda: os pés não sentem o assoalho. Para reativar a circulação, esfrega as pernas e os braços, arranha-se, sacode-se como um cão molhado. Pouco a pouco, o corpo se faz presente. Aquele rumor inusitado o inquieta. Sente medo. Talvez ainda sonhe. Palpa a testa e a sente abrasada.
O rumor é insuportável, contundente, dilacera o silêncio. Parece que vem do andar térreo, o banheiro. Embora receoso, decide verificar a causa. Apanha a vela e envereda por um longo corredor da velha casa. Desce uma tortuosa escada de madeira que range ao seu peso. Arrasta as pernas ainda entorpecidas e a sombra que se alonga a cada passo, que se quebra nos degraus da escada e cresce até tocar o teto. Cauteloso, entra no quarto de banho, avizinha-se à banheira e a ilumina. “Diacho!”, exclama, tranquilizando-se: um ratão.
O animal debate-se numa água ensaboada, suja, usada de véspera. Desesperado, arremessa-se às paredes da banheira, porém suas garras resvalam na louça e ele recai na água. Então recomeça a nadar, costeando as paredes da banheira e emitindo guinchos desesperados. Terêncio, por instantes, contempla a cena. Sente piedade do animal. Sabe que é nocivo, voraz e transmissor de peste. Mas está vivo. Ele se pergunta: “São Francisco o deixaria morrer? ”. E sente-se atraído pela vida, mesmo sendo a de um rato repugnante. Decide-se por salvá-lo. Como? Procura em torno qualquer coisa com que possa tirar o rato da água.
Apanha uma vassoura e a estende ao rato. Ele rápido sobe e corre ao longo do pau e lhe subiria braço acima, talvez lhe chegasse à cabeça, se Terêncio com um safanão não o jogasse outra vez na água. A luta do rato para salvar a vida o comove. O animal continua a debater-se, a redemoinhar na água e a emitir guinchos estridentes. Terêncio os sente como agulhas a lhe transpassarem os ouvidos. É preciso encontrar um meio para salvá-lo, antes que seja tarde. Terêncio apressa-se. Apanha um balde. Ao segurá-lo, uma barata ziguezagueia entre seus pés, procurando esconder-se. Ele a esmigalha com o pé. Não sente pena.
Terêncio aproxima-se da banheira e apanha o rato de chofre, com o balde. O animal, ágil, sobe aos seus bordos e se agarra. Firmando-se com as patas posteriores, ergue o corpo e espicha o focinho pontudo. Com as patas dianteiras estendidas, apalpa o vazio, procurando o ponto de apoio que lhe falta. O rato cambaleia por alguns instantes. Depois, agitando a cauda, chicoteia a água e de novo estabelece o equilíbrio. Imediatamente se ergue e apalpa em volta. Franze o focinho, abre a boca, mostra os dentes e guincha. Terêncio novamente ergue o balde. O animal inclina-se para a frente. Novamente o rato lhe subirá pelo braço – improvisada ponte de salvação. Surpreendido com a rapidez do rato, Terêncio salta para trás e arremessa o balde na água. Este cai com rumor, balouça, gira, gira e depois flutua sobre aquela água espumosa. Com o baque, o rato cai, numa cambalhota, dentro do balde. Rápido, soltando amiudados guinchos, sobe à sua borda. O balde rodopia transportando-o, como um náufrago no escaler. Terêncio, impaciente, refaz a tentativa frustrada e novamente fracassa: mais uma vez, é obrigado a saltar para trás e jogar o balde na água com o rato que, desesperado, sobe-lhe aos bordos e nele se agarra. Terêncio não desanima, embora já cansado, mas o rato o envolve. Aquele ser peludo, maltratado, mostrando a pele rosada sob o pelo eriçado, move-se inquieto sobre a estreita borda do balde e fixa sobre ele seus pequenos olhos redondos, vermelhos como brasa. Terêncio nervoso resmunga, esfrega o nariz, alisa o bigode num gesto nervoso e sua em bicas. É necessário encontrar um meio de salvá-lo sem o risco de o rato subir sobre ele. Terêncio apanha uma toalha e tenta jogá-la sobre a boca do balde. O rato, vendo o pano aproximar-se, guinchando sobe pelas suas pregas que, moles e balouçantes, não lhe oferecem apoio. Terêncio afasta-o com um safanão da toalha. Depois, negaceando, circula em torno da banheira à espera de uma oportunidade: quando a vislumbra, de surpresa, joga a toalha sobre a boca do balde e o envolve segurando fortemente as pontas por baixo do balde. O rato, prisioneiro, guincha, debate-se dentro da armadilha para livrar-se. Arremessa-se contra o pano e o ponteia aqui e ali com o focinho.
Terêncio aos trambolhões transporta a sua presa bambaleante fora de casa e a despeja na rua: devolve o rato à cidade adormecida. O rato, estropiado, arrasta-se ao longo da sarjeta procurando um buraco para esconder-se. Terêncio o contempla. Depois o persegue, o alcança e salta enorme, pesado, com os dois pés sobre o seu corpo molhado: um esguicho de sangue escapa do focinho. O asfalto tinge-se de vermelho, as vísceras escapam do ventre e da boca do rato esmagado. Terêncio sente palpitar debaixo dos pés aquela carne macia, peluda e quente."
Rio de Janeiro, 1959
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