“Analisando o conjunto da produção de Iberê Camargo, o crítico Paulo Herkenhoff faz a seguinte consideração: ‘Iberê pinta como pintor, desenha como desenhista e grava como gravador. (...) Cada técnica é trabalhada com justeza no seu campo de tensão próprio. (...) Sempre abraçou outros múltiplos suportes que lhe são oferecidos: biombo, louça, cerâmica, tapeçaria, saia, camiseta, macacão, faixas, outdoor. Enfim, pode pintar tudo: como se o mundo pudesse (ou devesse) ser uma grande pintura…’.
A cerâmica foi um desses suportes sobre o qual Iberê produziu muitas pinturas, num curto espaço de tempo. A Fundação tem registros fotográficos de 60 peças [...]. Realizados, majoritariamente, sobre porcelana industrial, os trabalhos, datados de 1960, 1961, 1964 e 1965, revelam que o artista soube explorar muito bem o campo de tensão próprio dessa técnica, experimentando possibilidades temáticas e estilísticas que iria desenvolver na pintura.
O primeiro grupo de trabalhos produzidos por Iberê reúne as peças datadas de 1960 e 1961, que foram realizadas com o acompanhamento da ceramista Luiza Prado. As tintas usadas no processo de pintura em porcelana são à base de minerais, suas cores e texturas são modificadas quando submetidas ao forno, e a temperatura e o tempo de queima têm que ser exatos. Assim, os conhecimentos técnicos são indispensáveis para produzir esse trabalho. [...]
Numa de suas frases favoritas, Iberê dizia: ‘Não nasci para enfeitar o mundo’, e suas pinturas em porcelana certamente passam bem longe de propostas decorativas. [...] Em algumas peças, o artista imprime ritmo e dinamismo com o uso do scratch, o risco seco, a retirada da tinta com o cabo do pincel, técnica que, até então, usara pouco, mas que viria a tornar-se uma marca de sua pintura. [...]
Ainda no início da década de 1960, Luiza Prado deixa Porto Alegre e Iberê retoma a produção de cerâmicas com Marianita Linck. De 1964, chegaram a nós apenas quatro peças, sendo uma delas um trabalho de grafismo. Dois pratos são realizados em scratch sobre fundo preto, ecoando desenhos e gravuras, um terceiro é pintado a cores, mas os três remetem ao conjunto de esboços e estudos para as impactantes pinturas Semeadores (cagadores de fogo) e Ceifadores, executadas por Iberê naquele mesmo ano.
No conjunto realizado em 1965, também com Marianita, a figura do ‘Karapebunda’, apenas insinuada nas cerâmicas do ano anterior, aparece com grande força e corrobora a análise de Vera Beatriz Siqueira sobre essa forma: ‘(...) o ‘cara-pé-bunda’ (ou ‘Karapebunda’), [é um] nome cunhado por Iberê para uma de suas formas entre a figuração e a abstração, entre o contorno antropomórfico e a pura energia expansiva. Em alguns desenhos, a figura é até mais reconhecível. Nas pinturas, porém, construído pelo embate com as tintas, pelo acúmulo de matéria, o ‘Karapebunda’ se converte em vibração e movimento.’
As cerâmicas produzidas em 1965 espelham a temática e a questão matérica que passa a dominar a obra de Iberê a partir desse período. São trabalhos empastados, pintados com grossas camadas de esmalte cerâmico, cuja espessura o fogo não perdoa. Durante a queima, a tinta estoura, formando bolhas, asperezas e texturas, que se espalham nas superfícies dos pratos. Impregnadas na porcelana como vibração e movimento, essas explosões são imediatamente acolhidas por Iberê, em uníssono com sua produção pictórica.
O conjunto é a última experiência conhecida de seu trabalho em cerâmica, mas a amizade com Marianita Linck permanecerá até à morte do artista.”
MATTAR, Denise. In: POSSAMAI, Gustavo (Org.). Iberê Camargo: o fio de Ariadne. Fundação Iberê Camargo: Porto Alegre, 2020. p. 13-14. (Observar notas na fonte).