PINTURA DE CÂMARA
A pintura de João Queiroz é um exercício permanente sobre as condições de procedimento da própria pintura, sobre a sua prática e a ligação da imagem pictórica com o mundo visível e a fenomenologia da visão, mas também uma reflexão corporalizada sobre o corpo que pinta.
A metodologia de João Queiroz parte da utilização de uma tipologia clássica da pintura, a paisagem. Forma por excelência de composição das imagens do mundo desde o século XVI, a pintura de paisagem corporalizou muitos dos procedimentos da pintura enquanto disciplina artística, com um enorme relevo nos séculos XVIII e XIX.
Estas tipologias tradicionais da grande pintura ocidental foram fundamentais para reflectir sobre a forma como pensamos o mundo visível, mas sobretudo sobre como o organizamos, como o hierarquizamos perante os nossos olhos.
A história da pintura tem sido, portanto, uma história de tentativa de compreensão da percepção, mas também da forma como a percepção visual realiza representações que nos fazem entender o espaço social, político e estético, como construímos imagens do mundo – o que é válido para a pintura de paisagem holandesa e a forma como mostra a divisão da propriedade arduamente ganha ao mar, como é válido para a paisagem romântica alemã e a forma como fala do sujeito e do sublime.
É a partir de um profundo conhecimento destes processos históricos e estéticos da pintura que João Queiroz produz as suas pinturas de paisagem e mesmo as suas aguarelas, tomando, no entanto, a paisagem como uma moldura e não como um discurso.
Estas últimas, de que a Caixa Geral de Depósitos possui um núcleo considerável resultante da exposição que o artista efectuou em 2006 no Chiado 8 (exposição organizada pela Culturgest), são pequenas pinturas de câmara – por oposição ao carácter “sinfónico” das suas obras de maior escala.
A aguarela é uma tipologia inactual da pintura, que pertence a uma tradição da pintura como um saber-fazer muito específico, até porque não admite correcção, ou seja, toda a história da sua execução fica visível, como as rugas que marcam uma pele.
O uso da aguarela por João Queiroz possui um papel no interior do seu processo de trabalho – ela segue-se ao uso do desenho e é uma forma de pensar materialmente as pinturas a óleo. A sua especificidade técnica, no entanto, dá-lhe a importância de constituírem um campo de procedimentos exigente e problemático, precisamente porque não admitem erro.
Começa a ser claro que o procedimento de João Queiroz incide sobre o processo físico de produção de imagem face à história da pintura, nunca fazendo da pintura uma bateria de signos visuais que, na sua gramática, constituem metáforas ou alegorias do mundo, mas, pelo contrário, produzindo um campo visual que é táctil e corporalizado – porque o fazer depende dos gestos do corpo que pinta.
Estas obras de câmara pictóricas que são as aguarelas constituem um dos momentos desse ritual do fazer – que é não só o fazer da imagem que vemos, mas o fazer do próprio corpo do artista. E quando olhamos para estas pequenas e fascinantes pinturas vemos, na sua liquidez luminosa, uma recôndita performance que está escrita em cada marca no papel que não poderá ser apagada.
Delfim Sardo