PINTO QUADROS POR LETRAS
Vaidoso, este amor à italiana. Visto ao espelho, reflectido e, portanto, invertido, duplamente invertido. Há um lado voyeurístico neste fascínio narcísico, como há um lado erótico no subentendido destas inversões, nas subtis metáforas que a nossa imaginação pode construir.
Em 1971, na capa do número 1 da revista Colóquio Artes, que a Fundação Calouste Gulbenkian publicou durante cento e onze números, estava uma pintura de João Vieira, com data muito próxima deste Amor à italiana. Tratava-se de Uma rosa é, de 1968, pintura que fazia referência a Gertrude Stein e ao seu poema “A rose is a rose is a rose is”. O fascínio pelas palavras – e por este poema circular – parece invadir toda a obra do artista. Ele próprio dizia que a sua influência maior era Cesário Verde e que a ideia para as pinturas de palavras, letras e números que iniciou na década de sessenta tinha nascido com a paixão pelo poeta, o mais pictórico dos poetas portugueses: “Pinto quadros por letras, por sinais”, verso tomado literalmente e origem de uma obra construída em torno das palavras.
O seu percurso, no entanto, extravasa o domínio da pintura, quer na participação do grupo KWY (com Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, Christo, Jan Voss e José Escada), quer nas esculturas – também de letras – instalações ou performances.
Amor à italiana permanece, na certeza da sua gestualidade, na ironia do título e da dupla inversão, uma das obras maiores de João Vieira, entre o poema visual e a pintura, entre o jogo e a atenção do espectador.
Uma pergunta paira ao olhar para esta pintura: onde mora o seu jogo erótico? Na literalidade a partir do título, ou na nossa imaginação?
Uma dupla inversão, no entanto, é sempre o mesmo de outra forma.
Delfim Sardo