CO-3035
Macedo, Ary Ferreira de. [Carta] 1960 fev. 20, Rio de Janeiro, RJ [para]
Candido Portinari, [Rio de Janeiro, RJ]. 5 p. [manuscrito]
Prezado Portinari
Desculpe a intimidade do “prezado” aí de cima. O adjetivo não corre por conta de outra qualidade que não seja uma admiração muito grande. Daí o “prezado”, que é sincero.
Há algum tempo atrás telefonei para sua casa, tendo sido atendido por sua esposa a qual, como sempre, foi gentilíssima, recordando, para minha surpresa, minhas visitas em 1947 (parece incrível, há mais de 10 anos!) quando publiquei n’ “A Época”, a revista dos estudantes de Direito, sua conferência, feita no Uruguai, intitulada “Arte Social”. Lembro-me, com orgulho, que tive a coragem (desculpe a modéstia...) de publicá-la na íntegra, pois parece que não havia “interesse” em ser publicada, naquele tempo, no Brasil.
Minha admiração por V., porém, não nasceu desses encontros, ela já era antiga e aquela aproximação apenas enraizou-a.
Quando estive nos Estados Unidos, em bolsa de estudos, lá por volta de 1952, a tal admiração pulsou como quê quando, em Washington, na Biblioteca do Congresso, lá fiquei vendo seus famosos murais. Não me pude conter e mandei-lhe a reprodução, em postal. O tipo de gesto que, hoje, me parece talvez pequeno, mas que, sinceramente, foi bem mais forte do que meu controle. Tive tanto orgulho, tanto entusiasmo, uma sensação danada para extravasar o que sentia que achei, então, que lhe devia mandar o tal postal. Você deve receber dezenas, centenas, sei lá quantas, de manifestações daquele tipo e, por isso, olhando pra trás, acho que aquela foi até meio tola. Repito, porém, sua Arte me emocionou tanto naquele momento, naquela pequena fração de tempo e de lugar que se não lhe tivesse escrito, acho que arrebentava de emoção.
O diacho é que essa tal sensação de vez em quando me sacode e fique sabendo que só não lhe escrevo, como fiz de Washington, por uma força de vontade muito grande e uma voz pequenina lá dentro que fica dizendo – “Deixe de tolice. Francamente, você acha que vai estar amolando o Portinari toda hora com seus sacolejos de emoção?”. Aí, fico até envergonhado comigo mesmo e pronto, não escrevo nada. Isso não impede, é claro, que estando perto do Banco Boa Vista seja imperioso que eu suba pra ver “A Primeira Missa” e lá fique acho que meio abobalhado, não impede que os garotos do mural do Ministério da Educação já me considerem amigo velho, pois com eles, frequentemente, jogo bola, pulo carniça, brinco de cabra-cega... E, é clro também, não impede ainda que tenha cópia de seu “Ruy Barbosa” (que foi para Haia) emoldurada em meu escritório.
Como vê, a admiração é antiga e permanente.
Em uma exposição feita na Maison de France (há alguns anos já) lembro intensamente de um quadro seu – um “Casamento no Interior”. Olhe, vou lhe dizer uma coisa que nunca disse a ninguém: quando, pela primeira vez, vi aquele quadro, fiquei com os olhos assim ardendo como se tivesse fumaça na sala. Aquilo era Beleza demais. Agora, recentemente, antes de meu telefonema do princípio desta carta, vi a reprodução de um “Homem do Interior”. Foi esse Homem que me obrigou a lhe telefonar e, agora, a lhe
escrever. Os olhos cansados, o esgotamento da expressão, o profundo desânimo que o Homemrevelava à primeira vista, cediam lugar, logo depois, à uma confiança grande e calma que o Homem inspirava, confiança no Futuro, esperança em sua posição que se torna altiva, firmeza de querer e profundidade terrível no olhar. O “Homem do Interior” me empurrou de tal maneira que não pude deixar d lhe telefonar. Era agora ou nunca que eu tinha de decidir. O Homem tomou a decisão por mim. Um velho plano armado há tanto tempo, embalado com carinho, estava em andamento. E tudo isso graças ao empurrão que o Homem do Interior me deu.
Agora preciso ir diretamente ao assunto senão esta carta não terá mais tamanho e Você não me perdoará essa confusão aí de cima.
O caso é o seguinte: a partir do “Casamento no Interior” comecei a sonhar (pode ser que esse sonho seja lugar comum, não faz mal, é isso mesmo que quero dizer), comecei a sonhar com a possibilidade de ter um quadro como aquele. De ter a Beleza. Claro que era um sonho, um sonho do qual a gente ri, mas que não quer deixar de sonhar e torce pra não acordar. Comecei a imaginar que com um bom caso no escritório talvez eu pudesse ser capaz de adquirir, então, a obra. Mas os bons casos, além de raros, raríssimos mesmo, quando se resolviam a aparecer já se tinham de traduzir em pagamentos tantos, sei lá, que se evaporavam. Era o problema de um casal novo que se instala pra começar a viver. E, naquela altura, ainda não tínhamos filhos. Hoje, felicíssimos, temos dois (Ary Antônio com 20 e Maria Teresa com 8 meses) e, se Deus quiser, teremos o terceiro em maio deste ano.
Aí entra o Homem do Interior, o qual, sabendo já da chegada do próximo bebê (eu contei ao Homem quando o vi logo na 1ª vez), me fez tomar a decisão do “agora ou nunca”. Se eu não aproveitar o que juntei e que temos até agora, embalando o tal sonho, vai ser mais difícil mais tarde com uma porção de coisas que um novo bebê traz...
Por isso tudo aqui estou para saber se você tem alguma obra da fase do Casamento ou do Homem do Interior para vender e, num esforço danado pra deixar minha timidez de lado, pra saber quanto teríamos de dispor para adquiri-la, ou melhor ainda, pra saber se o que temos junto já dá.
Saiba, Portinari, que me custou escrever esta carta. Apenas a esperança de ter a possibilidade de viver o tal sonho me faz escrevê-la. Ana Maria, minha mulher, me animou um bocado pra escrever. Ela também é metida a sonhar...
Caso não esteja em nosso alcance e acho que não está mesmo, não faz mal. Acredite que minha admiração permanecerá a mesma, intocável que ela é. Queria só que você me dissesse qualquer coisa. Aí, então, das duas, uma: ou continuamos a sonhar, ou nos rejubilaremos em nosso sonho.
Com as mais respeitosas lembranças á sua Senhora, aceite, com amizade, a admiração que integralmente lhe dedico.
Ary F. de Macedo
Levarei esta carta em mãos à Portaria de seu edifício
Meu endereço é R. Gal. Cristóvão Barcelos, 24 ap. 802
Laranjeiras – tel. 46-7781