Pôster Copa de 1970 (1970), de Acervo Marco Antonio LopesMuseu do Futebol
A expectativa para a Copa de 70 era alta: três seleções já eram bicampeãs e a disputa para ficar definitivamente com taça a Jules Rimet tinha tudo para ser acirrada. O Brasil estava no páreo contra Uruguai e Itália, com um time de camisas 10.
Os amigos Fael e Ivan. (1970), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Dois amigos paulistas decidiram participar da festa a qualquer custo, driblando a falta de dinheiro com uma decisão drástica: fariam a viagem até o México em um Fusca.
Esta exposição conta a jornada de Ivan Charoux e Fael Sawaya - uma história de amizade, de paixão pelo futebol e um testemunho da história recente da América Latina.
Rumo à Copa do México - Parte 1. (2014), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
A viagem começou em 12 de maio de 1970 em São Paulo, apenas 19 dias antes da abertura da Copa. Seriam mais de 11 mil quilômetros por terra e mar. Eles tinham pouco tempo, poucos recursos, uma câmera Super 8 e, é claro, seu companheiro mais fiel: o Fusca.
O carro do povo
Difícil imaginar as cidades latino-americanas a partir dos anos 1950 sem o pequeno carro de linhas redondas. Leve, compacto e barato, o Volkswagen Sedan impulsionou a indústria automotiva de muitos países da região, inclusive a do Brasil. Mas a história do modelo começa muito antes, na Alemanha.
Hitler/Jaeger File (1939-04-20), de Hugo JaegerLIFE Photo Collection
O projeto do Fusca foi desenvolvido pelo engenheiro autodidata Ferdinand Porsche a pedido de Adolf Hitler. O ditador nazista queria um automóvel alemão para competir com o americano Ford T. Porsche começou a desenhá-lo em 1934.
Hitler/Jaeger File (1938-06-25), de Hugo JaegerLIFE Photo Collection
Em 1938, Hitler participou do lançamento da pedra fundamental da fábrica em Fallersleben.
Hitler queria que o modelo se chamasse KDF Wagen – Kraft durch Freude, ou “força através da alegria”. O nome não pegou, e logo mudou para o muito mais simples Volskwagen – o “carro do povo”, que batizaria também a fábrica e a marca.
Fábrica de Fuscas em São Bernardo do Campo., de Fundo Correio da ManhãMuseu do Futebol
No Brasil, o primeiro lote de 30 Fuscas chegou ao Porto de Santos em 1950. A produção nacional só teve início em 1958, na planta construída em São Bernardo do Campo. Quase metade dos componentes vinha de fora do país. Em 1962, a fabricação incorporou chassis brasileiros – e foi justamente este o modelo usado por Fael e Ivan em sua aventura para o México.
Corrida maluca
A ideia de ir de carro até o México não foi acaso. Na mesma época, o jornal inglês Daily Mirror promovia o World Cup Rally, anunciado como a mais longa corrida do mundo: mais de 26.000 km em 39 dias, começando no estádio de Wembley, em Londres – sede da Copa de 1966 -, até o Estádio Azteca, na Cidade do México. A largada foi dada em 19 de abril por Sir Alf Ramsey, técnico da seleção inglesa de futebol.
Jimmy Greaves ao lado de seu Ford Escort. (1970-04-27), de Hulton ArchiveMuseu do Futebol
Estimulados por um prêmio de 40.000 Libras e pela chance de fama mundial, 96 equipes se inscreveram. Uma delas chefiada pelo ex-capitão da seleção inglesa, Jimmy Greaves, com um Ford Escort. Ainda no auge da carreira futebolística, ele deixou de ser convocado para a seleção inglesa na Copa de 1970 e decidiu tentar outro esporte.
Alice Watson, Ginette Derolland e Rosemary Smith no Rally da Copa do Mundo. (1970-04-03), de Hulton ArchiveMuseu do Futebol
Duplas femininas também participaram da competição. Dentre elas a equipe da irlandesa Rosemary Smith, com um Austin Maxi.
Enquanto a emancipação feminina ganhava as estradas do mundo, no Brasil as mulheres seguiriam proibidas por Lei de jogar futebol, até 1979.
Rally da Copa do Mundo. (1970-04-26), de MirrorpixMuseu do Futebol
A primeira etapa percorreu 11 países europeus e terminou em Lisboa, Portugal, onde os competidores embarcaram de navio para o Rio de Janeiro. A segunda começaria no dia 8 de maio, na frente do Hotel Glória. Dos 96 carros que saíram de Wembley, só 71 concluíram a etapa europeia.
Fusca de Ivan e Fael em Foz do Iguaçu. (2014), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Com a grande repercussão que o Rally vinha tendo, Ivan e Fael viram a oportunidade de que precisavam para acelerar sua própria viagem: paramentaram todo o Fusca como se eles também fossem competidores. O nome da equipe fictícia: "Filhos da Pista", com o número 15. Para guiá-los, mapas comuns de rotas rodoviárias.
Passaporte do Ivan - Parte 2. (1970), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Deu certo. Até Guayaquil, no Equador, eles se mantiveram à frente do Rally, percorrendo 1.500 km por dia com a vantagem de usar as estradas asfaltadas. Quando estavam entrando na Bolívia, ouviram pelo rádio AM: “...y llega el rally y siempre hay un Volkswagen adelante” – já estavam sendo confundidos com os competidores! Os carimbos nos passaportes mostram o cruzamento de fronteiras em ritmo acelerado.
Uma região de desigualdades
Viajar pelas estradas latino-americanas mostrou à dupla um pouco das mazelas do continente. Ainda no cone sul, os amigos presenciaram trabalhadores à beira de uma estrada levando chicotadas de um feitor. Situações como essa levaram o escritor uruguaio Eduardo Galeano a escrever, nesta mesma época, “As veias abertas da América Latina”, um longo ensaio de denúncia sobre os efeitos da exploração imperialista.
Lima após terremoto. (1970-05-31), de Gamma-KeystoneMuseu do Futebol
Ivan e Fael passaram pelo Peru dias antes do grande terremoto de 31 de maio de 1970 - mesmo dia da abertura da Copa do México. 67 mil pessoas morreram em todo o país, causando comoção nacional.
A seleção Peruana faria seu primeiro jogo dali a dois dias, após 40 anos sem jogar um mundial. Mesmo abalada, fez uma grande Copa, sob o comando do técnico brasileiro Didi.
Em Guayaquil, no Equador, os amigos tentaram embarcar o Fusca para o Panamá no navio que estava reservado para o rally, sem sucesso. Tiveram que esperar dois dias para despachá-lo em outra embarcação. Depois, fizeram amizade com marinheiros franceses e foram de carona no vapor Almathée, que levava um carregamento de bananas para os Estados Unidos.
De Cornell CapaLIFE Photo Collection
Vários dos países da região produziam frutas para exportação em grandes latifúndios pertencentes a companhias americanas, explorando mão de obra barata. Eduardo Galeano critica longamente as desigualdades promovidas por esta dinâmica – mas não só ele. No romance “Cem anos de solidão”, Gabriel García Márquez transformou em ficção um episódio verídico que ficou conhecido como “Massacre das Bananeiras”: em 1928, um número até hoje desconhecido de trabalhadores foi morto pelo exército colombiano durante uma greve por melhores condições de trabalho.
Ivan e Fael desembarcam depois de uma travessia em balsa. (1970), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Não eram só Ivan e Fael que tinham passaporte. Para viajar por tantos países, o Fusca também tinha seus próprios documentos de viagem. Neste video, da viagem de volta, ele desembarca da balsa que o trouxe do Panamá para o Equador.
Transporte do Fusca. (1970-05-23), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Tinha uma guerra no meio do caminho
Antes de chegar a Guadalajara, Ivan e Fael viveram a situação mais tensa da viagem na fronteira entre Honduras e El Salvador. Na noite do dia 31 de maio, enquanto carimbavam os passaportes, ouviram um tiroteio e correram de volta para a estrada assim que a situação se acalmou.
Sem saber, eles sofreram os ecos de um conflito entre os dois países que teve o seu pico no ano anterior, em 1969, no que ficou conhecido como “A Guerra do Futebol”, ou “A Guerra das 100 horas”.
Exército de El Salvador avança sobre Honduras. (1969-07-15), de La Prensa GraficaMuseu do Futebol
Os dois países viviam um longo período de tensão política causada por razões estruturais que incluíam questões fundiárias e migratórias. El Salvador era um dos países mais industrializados da América Central, mas também um dos mais adensados; Honduras, por sua vez, tinha economia majoritariamente agrícola e era o terceiro maior produtor de bananas do mundo. Muitos salvadorenhos emigravam ilegalmente para Honduras em busca de terras, e o país respondia perseguindo os imigrantes.
Tropas de Honduras na "Guerra das 100 Horas". (1969-07-15), de AP PhotoMuseu do Futebol
As tensões chegaram ao pico em 1969 durante as eliminatórias para a Copa do México. As três partidas entre as seleções de Honduras e El Salvador foram marcadas pela violência fora do campo, com perseguições e assassinatos. El Salvador garantiu a vaga para a competição e, duas semanas depois, bombardeou várias cidades do país vizinho, incluindo instalações da força área hondurenha na capital Tegucigalpa. O cessar-fogo só aconteceu após a intervenção da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Futebol preocupa número cada vez maior de pessoas - parte 3. (1969-07-13), de Correio da ManhãMuseu do Futebol
Guerra do Futebol, também conhecida como Guerra das 100 Horas. (1969-07-16), de Correio da ManhãMuseu do Futebol
Usado pela imprensa para chamar a atenção no início do conflito, o termo “Guerra do Futebol” logo passou a ser problematizado quando os bombardeios ficaram sérios.
Finalmente, o México
Quase sem parar, Ivan e Fael chegaram a tempo de ver a primeira partida da Seleção Brasileira contra a Tchecoslováquia, em 3 de junho, no estádio Jalisco.
Rumo à Copa do México - Parte 2. (2014), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Com a seleção mexicana jogando apenas na cidade do México, Guadalajara adotou o Brasil como time do coração. As ruas eram verde e amarelas. Ao final dos jogos, era comum a formação de corsos espontâneos pelas ruas da cidade, atrás do fusquinha.
Ingresso para o jogo entre Brasil e Tchecoslováquia pelas oitavas de final. (1970-06-03), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Os amigos só tinham na mão os ingressos para a primeira partida da Seleção Brasileira, mas ganharam dos mexicanos convites para os outros jogos. Foi assim que conseguiram ver a final contra a Itália no estádio Azteca, na Cidade do México, e puderam testemunhar a histórica conquista do tricampeonato.
Segundo gol de Jairzinho. (2014), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Vários trechos de jogos ficaram gravados com sua câmera Super 8, inclusive um dos gols de Jairzinho na estreia da Seleção, contra a Tchecoslováquia.
Maluf presenteia os Tricampeões Mundiais com Fuscas. (1970-07-03), de José PintoMuseu do Futebol
Um presente para os tricampeões
Na volta ao Brasil, a prefeitura de São Paulo presenteou os jogadores com um Fusca 0 km para cada tricampeão, com direito a um buquê de rosas vermelhas no porta-malas. Mais um exemplo de como
o modelo marcou a época, o agrado demonstra também como os atletas
ainda estavam longe de receber salários milionários, mesmo sendo os melhores
jogadores do planeta.
Para muitos, aquele foi o primeiro carro da vida, caso de Jairzinho. O presente com dinheiro público rendeu um processo de 36 anos contra o então prefeito Paulo Maluf. Em 2006, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucional a Lei que o havia autorizado a fazer a despesa.
Homenagem da Motoradio aos tricampeões brasileiros. (1970-07-21), de O Estado de São PauloMuseu do Futebol
Todo mundo queria pegar uma carona no sucesso dos tricampeões - até o fabricante do rádio presentado junto com os Fuscas.
A história do Fusca continua
Vocês acham que a aventura acabou depois do Tri? Não mesmo. Fael e Ivan seguiram rumo ao norte até o Alaska, atravessando os Estados Unidos e o Canadá, antes de voltar ao Brasil. Ao todo, foram oito meses de viagem, mais de 63 mil quilômetros rodados e 16 países visitados com o fusquinha.
Incêndio em fábrica da Volkswagen. (1970-12-18), de Fundo Correio da ManhãMuseu do Futebol
De volta ao Brasil, Ivan e Fael tinham planos de levar seu valente fusquinha à fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, para comemorar a façanha junto com o fabricante. Mas a planta sofreu um incêndio de grandes proporções no dia 18 de dezembro, deixando totalmente destruída a ala onde os veículos eram pintados. A fábrica foi rapidamente recuperada.
Apesar desse percalço, o modelo continuou sua história de sucesso por quase três décadas. Desde o início da produção, o Fusca foi líder de vendas no Brasil por 24 anos seguidos. E entre 1959 e 1996, mais de três milhões de Fuscas foram comercializados no território nacional.
Último Fusca montado no México. (2003-07-30), de Andrew Winning, poolMuseu do Futebol
O Fusca unia o Brasil ao México tanto quanto a Copa de 1970. Por lá, o carro também ganhou um apelido – Vocho – e era igualmente campeão de vendas. O México foi o último país do mundo a encerrar a produção do modelo. Em 2003, o último Vocho a sair da linha de montagem mereceu uma festa de despedida animada por mariachis.
Do tri para as telas
A aventura de Ivan e Fael continua rendendo. Em 2014, eles refizeram a viagem até o México com uma réplica do Fusca original para o documentário “Filhos da Pista”, dirigido pelo mexicano León Serment e produzido por Cassio Pardini e Claudio Cao Quintas. A história dessa incrível amizade ficará eternizada também nas telonas.
Fael e Ivan na estrada. (2014), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Ivan e Fael retornam ao Estádio Jalisco. (2014), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Em memória de Fael Sewaya (à direita), do diretor León Serment e da produtora Adriana Rosique.
MUSEU DO FUTEBOL
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
JOÃO DORIA - Governador do Estado
RODRIGO GARCIA - Vice-Governador do Estado
SÉRGIO SÁ LEITÃO - Secretário de Cultura e Economia Criativa
CLÁUDIA PEDROZO - Secretária Executiva de Cultura e Economia Criativa
FREDERICO MASCARENHAS - Chefe de Gabinete de Cultura e Economia Criativa
IDBRASIL CULTURA, EDUCAÇÃO E ESPORTE - Organização Social de Cultura gestora do Museu do Futebol
Conselho de Administração
Presidente – Carlos Antonio Luque
Diretora Executiva e Administrativa e Financeira - Vitoria Boldrin
Diretora Técnica - Marilia Bonas (interina)
EXPOSIÇÃO RUMO À COPA DE 70
Curadoria e textos: Renata Beltrão
Pesquisa e colaboração geral: Ligia Dona, Dóris Régis, Camila Aderaldo, Ademir Takara
Montagem: Renata Beltrão
Revisão: Daniela Alfonsi
Tradução: Juliana Pons
Tratamento de imagens: Hugo Takeyama e Lucas Guedes
Crédito das imagens em movimento: Cenas extraídas do filme “Filhos da Pista”, dirigido por León Serment; Produção Latina Estudio, Nation Filmes e Taller de Luz
Agradecimentos a Cássio Pardini, Ivan Charoux e Rafael Sewaya (in memorian) e familiares, e à
Toriba Volkswagen pelo patrocínio que viabilizou esta exposição, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
São Paulo, setembro de 2020.
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