Seca (1944), de Candido PortinariProjeto Portinari
"Uma série de cenas espantosas de beleza, diante das quais se desenrolará a tragédia dos retirantes. Os céus de Portinari já revelam a esperança e a angústia dos flagelados. As cenas por ele pintadas valem por um espetáculo..."
Marcos André, jornalista
Balé Iara (1946-07), de Thomas J. FarkasProjeto Portinari
Com a 2ª Guerra Mundial em curso, o Original Ballet Russe, dirigido pelo Coronel Wassili de Basil, afastou-se momentaneamente dos palcos europeus e passou a excursionar mais assiduamente pelo continente americano. Em 1941, a companhia iniciou uma vitoriosa turnê pelos Estados Unidos, percorrendo, em seguida, todos os países da América Latina.
Portinari entre amigos (1944)Projeto Portinari
Conservando a tradição do balé russo, W. de Basil procurou enriquecer e renovar seu repertório, incorporando concepções arrojadas e modernistas de importantes artistas dos lugares visitados. "Iara", o primeiro balé brasileiro a entrar definitivamente no circuito internacional, nasceu de uma conversa numa frisa do Theatro Municipal de São Paulo, em 1942, entre o diretor russo e o poeta Guilherme de Almeida. A ideia era compor um enredo com temática brasileira, mas que transmitisse uma mensagem humana, de caráter universal. O argumento foi encomendado ao próprio poeta; a música, ao maestro Francisco Mignone; os cenários, a Candido Portinari.
Balé Iara (1944)Projeto Portinari
Falando a um repórter, no hall do Palace Hotel, em 3 de junho de 1942, W. de Basil externou todo o seu entusiasmo pela arte brasileira:
"Encontrei no Brasil valores artísticos extraordinários. Conheci escritores, músicos e pintores notáveis. E ao lhes apreciar a arte, isolada cada uma no seu gênero, não pude reprimir o desejo de reuni-los."
Antes de conhecer o Brasil, o diretor do balé russo já travara conhecimento com a arte de Portinari na Europa e nos Estados Unidos. "Tive de Candido Portinari uma impressão inapagável, pois ele deu-me uma emoção diferente, de colorido, de forma, de movimento, de força, de vida, enfim. Portinari é, na minha opinião, um moderno clássico."
Espantalho, Pipas e Balões (1944), de Candido PortinariProjeto Portinari
A riqueza do nosso folclore, que motivou o tema do balé "Iara", o surpreendia:
"O folclore brasileiro foi outra das muitas surpresas que seu país me proporcionou. A mitologia grega, que é tão rica de motivos clássicos, não poderia oferecer um tema tão sugestivo e impressionante como a lenda da Yara. Unificação que é de duas influênciasdistintas – o Sol, Guaracy, e a Lua, Jacy – a Yara desenvolve a sua atuação sobre os homens e as coisas, com o predomínio temporário de cada um."
Retirantes (1944), de Candido PortinariProjeto Portinari
Portinari foi o primeiro artista plástico brasileiro de renome a retratar nas telas o drama dos nordestinos vitimados pela seca. Em 1944, pintou a Série Retirantes, que causou grande comoção no Brasil e no exterior.
Em declaração a um jornal da época, percebemos a relação visceral de Portinari com o tema:
"Desde menino tenho vivido o drama dos retirantes...
...Lembro-me bem da seca de 1915, as grandes levas, aquela miséria (...) Essas recordações, a que se acrescentam novos contatos com a gente do interior de São Paulo, fazem o tema destes quadros...
...Essas levas não param. Como deixar de fixar em meus quadros aquilo que faz parte de minha infância, de minha vida, e a minha esperança de ver uma vida melhor para os homens que trabalham a terra?"
Balé Iara (1944)Projeto Portinari
No mesmo ano de 1944, Portinari recebeu o convite para criar os cenários e os figurinos do balé "Iara", retomando o tema que já fazia parte de suas preocupações humanas e estéticas, a seca do Nordeste. Ao todo, foram concebidos cinco cenários e quarenta figurinos, certamente seu mais importante trabalho cenográfico.
Espantalho (1944), de Candido PortinariProjeto Portinari
Balé Iara (1946-07), de Thomas J. FarkasProjeto Portinari
O crítico Antonio Bento refere-se ainda a um impressionante painel exibido no intervalo dos dois atos:
"Além dos problemas especificamente de ordem estática, (Portinari) passou a interessar-se também pela tragédia social desses infelizes, perseguidos por uma fatalidade grega. E começou a fazer suas composições maiores, como esse impressionante painel que aparece no bailado "Iara", separando o 1º do 2º ato."
O mito da Yara e a seca do Nordeste
Bem antes do descobrimento do Brasil, os índios da região nordeste já desciam do interior para o litoral, fugindo aos horrores da seca. Os cronistas do início da colonização fazem referência ao êxodo dos sivícolas em busca de terras úmidas durante longos períodos de estiagem. Foram eles nossos primeiros retirantes. Na visão mítica e poética dos nossos indígenas, Yara, o espírito das águas, sucume ao amor violento de Guaracy, o Sol, dando início ao flagelo da seca.
O bailado "Iára" O bailado "Iára" (1946-08-18)Projeto Portinari
A partir dessa lenda o poeta Guilherme de Almeida compôs o argumento do balé "Iara", transcrito no programa do Theatro Municipal de São Paulo, na sua estréia oficial, em 1946:
Balé Iara (1946-07), de Thomas J. FarkasProjeto Portinari
ATO I
CENA I
Recanto típico do Nordeste brasileiro. Época de fartura. As ÁGUAS correm, fáceis e livres, pelos rios e seus afluentes. É noite e faz luar. YARA repousa. JACY, a Lua, desperta-a e dança com ela uma dança de sedução. A noite empalidece. Vai amanhecer. E eis que surge, onipotente, desferindo seus RAIOS, GUARACY, o Sol. YARA, amedrontada, recusa-se à corte do astro rei e foge com JACY.
Balé Iara (1946-07), de Thomas J. FarkasProjeto Portinari
CENA II
Dia claro. Folgam as crianças à luz mediterrânea. Toda a natureza é uma festa alegre e farta. O povo trabalhador celebra a abundância feliz. De forma sintética, mas compelta, é exposto todo o tema fundamental do "Bumba-meu-boi" (a chegada do BOI, o pacto com o VAQUEIRO, a matança, o esquartejamento, a ressurreição e a vinda da BURRINHA e dos NOIVOS pretinhos...), evoluindo a trama rítmica até culminar no alvoroço colorido do "frevo" final.
Balé Iara (1946-07), de Thomas J. FarkasProjeto Portinari
ATO II
CENA I
Eis que GUARACY, enamorado de YARA, entra, dardejante e triunfal, oferecendo ao flexível espírito das águas as jóias do íris, que o seu reflexo acende nas esclamas líquidas. E YARA entrega-se docemente a GUARACY, que, pouco a pouco, a vai dominando até aniquilá-la.
Paisagem com Arco-Íris (1944), de Candido PortinariProjeto Portinari
CENA II
O apavorante prenúncio da seca. Atemorizados, vão desertar os primeiros bandos de RETIRANTES. Mas ainda resistem. E vem a procissão precatória, rogando clemência ao céu. Uma figura de iluminado – o MÍSTICO – concita o povo a ficar, a ter fé, a crer na volta da fartura, na generosidade da terra, na piedade de Deus. O MÍSTICO promete e, miraculosamente, uma esperança se esboça no espaço, sob a forma de um arco-íris, que logo se desvanece. E vem então a descrença, a revolta da turba e o martírio do MÍSTICO. Dá-se, afinal, a desolante debandada. Partem os RETIRANTES. Mas, no delírio do MÍSTICO, que fica, ferido de insolação e colado à terra flagelada, YARA reaparece, em miragem, e, pelas mãos côncavas do mártir, ainda dá de beber aos que têm fé.
Direção Geral: João Candido Portinari
Curadoria e Pesquisa: Maria Duarte
Textos: Projeto Portinari*
Copyright Projeto Portinari
*Baseado na edição do catálogo "Baile na Roça – Coreografias para Portinari", em 2003, por ocasião da remontagem do espetáculo homônimo, apresentado pelo Balé da Cidade de São Paulo, sob direção de José Possi Neto. Projeto editorial: Maria Duarte e Maria Gessy de Sales. Pesquisa, redação e edição de texto: Maria Gessy de Sales. Realização: Projeto Portinari.