Um edifício-monumento situado em um bairro da região central da cidade de São Paulo, a Estação da Luz foi inaugurada em 01 de março de 1901. Projetada pelo engenheiro britânico Charles Henry Driver, foi sede da São Paulo Railway Company e, desde 2006, é a casa do Museu da Língua Portuguesa.
No ano em que completa 120 anos, o Museu da Língua Portuguesa reabre ao público após um processo de restauro do prédio que passou por um incêndio em 2015 – o segundo de sua história.
Aqui, celebramos seu renascimento.
Estação da Luz por volta de 1896. (1896/1896), de Marc FerrezMuseu da Língua Portuguesa
Para falar da construção da Estação da Luz, é preciso contextualizá-la com base em alguns aspectos da história da cidade de São Paulo.
Esquina da Rua Líbero Badaró (1900), de Iconographia / Cia da MemóriaMuseu do Futebol
São Paulo dos anos 1900
A cidade de São Paulo do final do século XIX e início do XX crescia vertiginosamente, fortalecendo-se como centro comercial e financeiro da então Província. Era um período de grandes transformações urbanas, como abertura de avenidas e surgimento de bairros.
Rua Direita (1900/1905), de Iconographia / Cia da MemóriaMuseu do Futebol
Em 1900, o censo da época apontava que havia 240 mil habitantes na capital.
Concentração popular na inauguração do primeiro bonde elétrico em São Paulo. (1900-05-06/1900-05-06), de Guilherme GaenslyMuseu da Língua Portuguesa
Inauguração do primeiro bonde elétrico em São Paulo.
Diretamente relacionados a esse crescimento, estavam o desenvolvimento da economia e o aumento do número de imigrantes, parte dos quais se fixaram na própria cidade, onde iniciaram negócios e estabelecimentos comerciais, integrando um importante conjunto de comunidades de diferentes etnias.
Estação de trem Serrinha de Santa Clara, década de 1920. (1920/1920), de Autor desconhecidoMuseu da Língua Portuguesa
Não apenas a cidade de São Paulo, mas diversas regiões do estado passaram por grandes mudanças socioeconômicas, em especial na segunda metade do século XIX.
Trabalhadores retirando o café seco do terreiro para as tulhas. (1939/1939), de Theodor PreisingMuseu da Língua Portuguesa
E o café era um dos principais protagonistas desse processo.
Fazenda de Café Boa Vista – Colheita do café em fazenda de Ribeirão Preto. (1928/1928), de Theodor PreisingMuseu da Língua Portuguesa
O café se tornou o principal item de exportação, movimentando um conjunto de forças: urbanização, industrialização, imigração e ampliação do mercado interno e externo.
Fachada da Bolsa Oficial do Café. Rua XV de Novembro, ao fundo a Bolsa Oficial do Café, corretores de café e transeuntes. Santos/SP, década de 1960. (1960/1960), de José HerreraMuseu da Língua Portuguesa
Assim, as motivações para a instalação da estação são um reflexo da economia cafeeira: busca-se ampliar e melhorar a infraestrutura comercial, o que inclui um sistema de transporte mais eficiente para atender às novas demandas agroexportadoras.
Irineu Evangelista de Sousa - O Barão de Mauá - homenageado em Brasilianxs, de Museu do Amanhã e Wikimedia CommonsMuseu do Amanhã
Em 1860, Irineu Evangelista de Sousa, o Visconde de Mauá, funda em Londres a empresa “The São Paulo Railway Company Ltd”, instituição responsável pela construção da primeira ferrovia do estado de São Paulo.
Estação de Serrinha em Santa Clara; Trem – Fazenda Martinópolis – Serrana/SP, década de 1920. (1920/1920), de Autor desconhecidoMuseu da Língua Portuguesa
Dessa forma, com investimentos das iniciativas pública e privada, inicia-se a formação de uma importante malha ferroviária no interior do estado, ligando cidades como Jundiaí, Campinas, Limeira e Rio Claro.
Retiro S. Clara e linha de São Paulo a Minas Gerais. Ramal particular de via férrea da Fazenda Martinópolis – Serrana/SP, década de 1920. (1920/1920), de Autor desconhecidoMuseu da Língua Portuguesa
Poucos anos depois, em 30 de janeiro de 1868, é criada a Companhia Paulista de Estradas de Ferro, com o objetivo de escoar o café produzido no interior do estado.
Mapa das linhas da Companhia Paulista de Estradas de Ferro., de Autor desconhecidoMuseu da Língua Portuguesa
Caminho da estrada de ferro.
A construção da Estação
Entre as décadas de 1860 e 1900, a Estação da Luz ocupou três edifícios distintos, todos na mesma região da cidade, na qual, antigamente, havia antes o Caminho do Guaré.
Com destino às Minas Gerais, o antigo Caminho nasceu de uma pequena trilha indígena margeada em seu trecho inicial por extensos campos de pastagem.
Posteriormente, essa área viria a se tornar os bairros de Campos Elíseos, Luz e Bom Retiro. Era uma região pouco habitada durante o período colonial e parte do Império e, no século XIX, o Caminho foi desaparecendo, absorvido pelo crescimento da cidade.
Ao lado dele, foi implantado no início do século XIX o primeiro Jardim Público de São Paulo, destinado a ser um local de lazer e passeio aberto à população, caracterizado também como jardim botânico.
São Paulo - Jardim da Luz V, de Guilherme GaenslyMuseu do Ipiranga
Jardim da Luz
Fonte no Jardim da Luz. (1993-09-01/1993-09-01), de Juca MartinsMuseu da Língua Portuguesa
Jardim da Luz
Primeiros projetos
A Estação da Luz teve, ao todo, três prédios diferentes. O primeiro deles foi construído em 1867 em terreno cedido pelo governo da Província de São Paulo, localizado entre a rua Mauá e o Jardim da Luz, como parte da São Paulo Railway.
Menor e mais singela que a atual, a estação estava conectada à estrada de ferro que ligava Jundiaí, de onde o café saía para exportação, a Santos.
Para atender à crescente demanda – de passageiros e escoamento da produção cafeeira –, a Companhia construiu outra estação, em 1870. Dessa vez, em outro local: entre as atuais rua Florêncio de Abreu e avenida Cásper Líbero.
O prédio atual
O edifício que hoje está instalado entre o Jardim da Luz e a rua Mauá foi projetado pelo inglês Charles Henry Driver e construído entre 1895 e 1901. Não só o arquiteto veio de outro país, como também os materiais da construção: pregos, tijolos, telhas e estrutura de aço chegaram de navio. Por isso, diz-se que a "Estação da Luz veio pelo oceano Atlântico".
Sua arquitetura impressionava: a torre central, com 52 metros de altura, e seu relógio, com quase 3 metros de diâmetro, podiam ser vistos a centenas de metros de distância. A fachada principal, com mais de 157 metros de comprimento, criava um cenário grandioso na cidade. Não havia nada comparado com a grandeza da Estação da Luz, o que fez dela um marco e um símbolo permanente no espaço urbano.
Aliás, seu estilo arquitetônico lembra a Abadia de Westminster e o Big Ben, ambos em Londres.
Abadia de Westminster, à esquerda, e o saguão principal da Estação da Luz, à direita.
Big Ben, à esquerda, é o nome do sino instalado no Palácio de Westminster, em 1859. O nome oficial da torre do relógio é Elizabeth Tower, nome escolhido para comemorar o Jubileu de Diamante da Rainha Isabel II do Reino Unido.
Além de ser um referencial na paisagem urbana, também fazia parte da vida cotidiana e do imaginário da cidade de São Paulo.
Ferroviário lê jornal, cercado por carregadores de malas, em frente à Estação da Luz. (1910/1910), de Vicenzo PastoreMuseu da Língua Portuguesa
Trabalhadores em frente à Estação da Luz.
Garotos engraxates. Área entre o Jardim e a Estação da Luz. (1910/1910), de Vicenzo PastoreMuseu da Língua Portuguesa
Garotos engraxates na rua entre o Jardim da Luz e a Estação.
Pequenos prestadores de serviço jogando bola de gude, em frente à Estação da Luz (1910/1910), de Vicenzo PastoreMuseu da Língua Portuguesa
Crianças jogam bola de gude em frente à Estação.
Não é incomum também encontrar nos jornais e revistas poemas e histórias que mencionavam a Estação.
As primeiras décadas do século XX viram o auge da estação, quando a Luz era uma região de destaque na cidade e símbolo do ciclo do café.
Era pela Estação da Luz que as autoridades brasileiras e internacionais desembarcavam ao chegar a São Paulo, como no caso da visita do embaixador inglês sir Ralph Paget, em 1919.
Na foto ao lado, a multidão recepciona Ruy Barbosa, diplomata brasileiro que foi fundador da Academia Brasileira de Letras. Na ocasião, veio a São Paulo realizar uma conferência.
Em 1946, um incêndio – que durou mais de 7 horas – atingiu toda a ala leste, o grande saguão central e a torre do relógio. A torre serviu de chaminé que, com a diferença de pressão, concentrou o fogo em seu interior, evitando assim que a ala oeste fosse atingida. Ainda assim, grande parte da estação ficou destruída, restando só a gare e a ala oeste.
Em 1947, a São Paulo Railway foi nacionalizada com o nome de Estrada de Ferro Santos-Jundiaí (EFSJ), e as obras de reconstrução da estação foram iniciadas, estendendo-se até 1951. Foi nesse processo que o edifício ganhou mais um pavimento (na ala leste, com os mesmos desenhos da fachada original) e uma plataforma central para o uso do trem metropolitano.
Restaurante dentro da Estação da Luz. (1902/1902), de Guilherme GaenslyMuseu da Língua Portuguesa
Um dos lugares afetados pelo incêndio foi o antigo restaurante.
A ampliação da Estação foi motivada pelo aumento do número de passageiros. À época, a população da cidade já era de quase 2 milhões de habitantes.
Face leste da Estação da Luz. (1902/1902), de Guilherme GaenslyMuseu da Língua Portuguesa
Plataforma de embarque de passageiros, Estação da Luz. (2021-07-01/2021-07-01), de Cristiano FukuyamaMuseu da Língua Portuguesa
Outra intervenção importante no prédio da Estação foi a implantação do Museu da Língua Portuguesa. Realizada entre os anos 2000 e 2006, esse processo envolveu um amplo e cuidadoso projeto de restauração do edifício que, na época, já estava tombado como patrimônio pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico) e CONPRESP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico).
O Museu da Língua Portuguesa
Encabeçado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha e por seu filho, Pedro Mendes da Rocha, o projeto de reconversão realizou um conjunto de intervenções arquitetônicas para viabilizar a utilização do monumento para um novo fim, respeitando as características da construção.
O mesmo partido adotado por esse projeto foi aplicado para o restauro realizado no edifício entre 2016 e 2020, em decorrência do segundo incêndio que atingiu a Estação, em 2015. Essa nova empreitada também contou com a mesma dupla de arquitetos.
Reconstrução da cobertura da estação. (2018-04-05/2018-04-05), de Ana MelloMuseu da Língua Portuguesa
Um dos desafios das obras foi a reconstrução do telhado do terceiro andar, onde fica instalada uma das experiências favoritas do público do Museu: a Praça da Língua.
Reconstrução do teto da Praça da Língua. (2018-12-04/2018-12-04), de Ana MelloMuseu da Língua Portuguesa
Rua da Língua, instalação do Museu da Lingua Portuguesa. (2020-10-19/2020-10-19), de Ana MelloMuseu da Língua Portuguesa
Praça da Língua
A ala oeste do prédio administrativo da Estação da Luz sempre foi considerada a parte mais preservada, contendo elementos originais. No processo, as antigas camadas aplicadas nas paredes, antes já reveladas, foram preservadas.
Ainda nesta ala, foi realizada a restauração completa dos assoalhos e a recomposição de pinturas decorativas.
Na foto, um detalhe do restauro da pintura de uma das principais salas da ala oeste do museu.
Processo de restauração de boiseries e rodapés.
Recuperação do mezanino.
Os ladrilhos também receberam tratamento com a remoção de manchas, pintura, substituição de peças avariadas por peças novas, lixamento, polimento e enceramento de todos os pisos.
Também o relógio passou por cuidados. De fabricação nacional, o relógio Michelini havia substituído o modelo inglês Johnny Walker Benson, destruído pelo incêndio de 1946.
É importante dizer que o relógio tem sua própria história secreta. Ao longo de sua história, apenas três pessoas foram responsáveis pela sua manutenção: Júlio Miller, Augusto Fiorelli e seu neto, Augusto César Sampaio Fiorelli.
A história de Fiorelli e sua família se mistura com a da própria Estação e, como tal, da memória da cidade de São Paulo. Em 2021, Augusto compartilhou suas memórias com o Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa. A entrevista agora faz parte do acervo do museu.
[Teaser] Vozes da Estação: Fiorelli, o relojoeiro (2021-06-03/2021-08-24), de Museu da Língua PortuguesaMuseu da Língua Portuguesa
Encontros de muitos caminhos
Assim como acontece com a família Fiorelli, a Estação é o lugar em que várias pessoas e histórias se cruzam e que marca também a constituição de um território diverso composto pela região da Luz e Bom Retiro. Seus moradores, trabalhadores e transeuntes. Migrantes de várias regiões do país e fora dele. Russos, lituanos, poloneses, sul-coreanos...
Fachada oeste da Estação da Luz vista do relógio da Estação Júlio Prestes e parte do pátio de trens. (2021-07-01/2021-07-01), de Cristiano FukuyamaMuseu da Língua Portuguesa
Fachada principal da Estação da Luz em que se vê a face leste da torre do relógio. (2021-07-01/2021-07-01), de Cristiano FukuyamaMuseu da Língua Portuguesa
Uma das mais importantes estações ferroviárias da cidade de São Paulo, a Estação da Luz foi projetada pelo arquiteto britânico Charles Henry Driver. (2018-08-09/2018-08-09), de Governo do Estado de São PauloMuseu da Língua Portuguesa
Em 2003-2004, dentro do processo de reconversão do edifício, as fachadas e as coberturas foram integralmente restauradas, respeitando-se os mínimos detalhes construtivos.
Entrada do Museu da Língua Portuguesa. (2021-07-01/2021-07-01), de Cristiano FukuyamaMuseu da Língua Portuguesa
O edifício que é a casa do Museu da Língua Portuguesa tem nos seus arredores a Pinacoteca do Estado de São Paulo (primeiro museu de arte do país), o Jardim da Luz (que já serviu para zoológico, observatório meteorológico, corridas de cavalos, feiras livres), a Sala São Paulo, sede da Orquestra Sinfônica do Estado (instalada na Estação Júlio Prestes) e o Memorial da Resistência, no prédio em que outrora foi do Deops-SP (Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo).
Paulo Mendes da Rocha, que também esteve à frente da implantação da Pinacoteca, defendia que não se deveria construir mais coisas novas, mas sim transformar as estruturas já existentes, adaptando-as aos novos projetos e às necessidades contemporâneas.
É a ele, e a seu pensamento, que dedicamos essa exposição em celebração à reabertura do Museu da Língua Portuguesa.
In memoriam
Paulo Mendes da Rocha