Aquele Abraço: dor da prisão virou alegria, perdão e samba

Gilberto Gil compôs um de seus maiores sucessos inspirado pela injustiça, mas a partida para o exílio o privou de ver a canção de adeus estourar.

Do Instituto Gilberto Gil

Redação: Ceci Alves, cineasta e jornalista

Gilberto Gil em ensaio fotográfico na década de 1970Instituto Gilberto Gil

“Que outra coisa para um compositor fazer uma catarse senão numa canção?”

Gilberto Gil sobre a música Aquele Abraço, no livro Todas as Letras (2003), de Carlos Rennó  

Aquele Abraço

Uma catarse. É disso que se trata o samba que Gil compôs quando saiu da prisão arbitrária que a ditadura militar no Brasil infligiu a ele e ao amigo Caetano Veloso, de dezembro de 1968 a fevereiro de 1969: um desabafo na forma de uma colcha de retalhos de memória e afetividade.

Gilberto Gil com Pedro Gil e Caetano Veloso, após saída da prisão (1976)Instituto Gilberto Gil

A saída da prisão

A música Aquele Abraço retrata o mundo que Gilberto Gil reencontrou após reaver a liberdade. Ele e Caetano foram soltos ao mesmo tempo do quartel na Vila Militar de Marechal Deodoro, na zona norte no Rio de Janeiro, na Quarta-feira de Cinzas de 1969.

Rever a cidade com a decoração de carnaval marcou tanto a Gil que isso foi usado como “pano de fundo da canção”, como conta no livro Todas as Letras: “Na minha cabeça, Aquele Abraço se passa numa Quarta-feira de Cinzas: é quando o ‘filme’ da música é em mim mentalmente locado.”

De John ShearerLIFE Photo Collection

A música como um filme

Para contar uma história cantada, Gil lançou mão do mecanismo fragmentadamente contínuo da narrativa audiovisual que lhe é peculiar desde a canção Domingo no Parque.

Ele ressignificou tudo o que passou durante a sua prisão, em decorrência do recrudescimento da ditadura no Brasil, num mosaico de emoções e sentimentos, expressados em forma de alegorias.

Detalhe de Gilberto Gil durante show BandaDois (2009-09-28)Instituto Gilberto Gil

A começar pelo título da música. Os militares que o vigiavam na prisão sempre o cumprimentavam mandando “aquele abraço”. O jargão do humorista Lilico, muito popular na época, era uma referência à qual o compositor não poderia ter acesso por estar preso e incomunicável.

No cárcere, Gil achava ser genuíno o tratamento, mas tal comportamento devia lhe causar estranheza: era contraditório ser tratado com tanto afeto e deferência pelos algozes que o mantinham cativo injustamente, sob falsas acusações de subversão e ataque a símbolos nacionais.

Gilberto Gil no show comemorativo Gil: 20 Anos-luz (Novembro de 1985)Instituto Gilberto Gil

Os militares tinham conhecimento de uma realidade que a Gil era vetada, por estar aprisionado; mas ele, ao deparar-se com ela, trazida pelos mesmos homens que eram seus carrascos, a reelaborou a partir do sensível.

Ele transformou o pavor, o sentimento de medo e abandono, a certeza da injustiça sofrida e a própria aspereza do mundo, em arte.

Ao usar na canção este cumprimento de forma tão efusiva, é como se ele o esvaziasse da triste memória dos meses de cárcere para preenchê-lo com a atmosfera carnavalesca e livre que encontrou nas ruas, ao sair do encarceramento.

Foi como uma palavra de ordem do sentimento de saída da prisão e, depois, do Brasil. Aquele abraço às coisas que voltou a ver, mas que seria obrigado a deixar devido ao “convite” ao exílio que se seguiu. O abraço de alguém que está solto e quer ir embora, transcender.

De Dmitri KesselLIFE Photo Collection

Aquele Abraço durante show da turnê Quanta de Gilberto Gil
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A Cidade Maravilhosa

Outra curiosidade desta colcha de retalhos é o verso “O Rio de Janeiro, fevereiro e março”. Além de ser um jogo de palavras com o nome da cidade e os meses do ano, também é a quantidade de meses que Gilberto Gil ficara preso, junto com o amigo Caetano.

De John PhillipsLIFE Photo Collection

Bem como o verso “Alô, alô, Realengo – aquele abraço!”. Não se trata do nome aleatório de um bairro da cidade do Rio de Janeiro. Gil queria fazer referência à zona da cidade onde ficou preso, como desvenda no comentário da música em Todas as Letras:

“A ideia em Aquele Abraço era citar um local qualquer da Zona Norte do Rio (onde ficamos), um daqueles beira-estrada-de-ferro (...), e Realengo é um deles. Uma associação inexata, feita por aproximação; eu nem queria me referir ao lugar certo onde havia ficado preso”.

Gilberto Gil e Caetano Veloso durante o exílioInstituto Gilberto Gil

A despedida do Brasil

Desde o título Aquele Abraço, o samba conta sobre a prisão, ao passo em que prenuncia a saída dele e do amigo Caetano para o exílio, menos de seis meses depois de deixar o cárcere, e logo após realizarem seu último show enquanto bastiões do movimento Tropicália.

Gilberto Gil e o Conjunto Folclórico Viva Bahia no show Barra 69, apresentado com Caetano Veloso antes do exílio (1969-07-20)Instituto Gilberto Gil

Não por acaso, a música encerra o espetáculo Barra 69, série de três shows que Gilberto Gil e Caetano Veloso fizeram uma semana antes de baterem em retirada do país, ordenados pelos militares.

O show tinha a intenção de arrecadar fundos para a viagem sem previsão de volta dos tropicalistas, mas terminou virando uma sinfonia do adeus, com alta voltagem política.

Gilberto Gil e o Conjunto Folclórico Viva Bahia no show Barra 69, apresentado com Caetano Veloso antes do exílio (1969-07-20)Instituto Gilberto Gil

“Para um espetáculo de despedida, o final não poderia ser mais eufórico. Com a plateia de pé, Gil fechava o show cantando Aquele Abraço, um samba irresistível que foi apresentado em público pela primeira vez nesse show”, conta o jornalista e escritor Carlos Calado.

O relato está no livro Tropicália - A História de Uma Revolução Musical (1997).

A música em sua concepção

A ideia geradora da música teve tudo a ver com o sentimento de partida, de deixar-se ir. Ocorreu ao artista quando ele, acompanhado de sua esposa na época, Sandra Gadelha, teve que ir ao Rio de Janeiro ter com os militares, para acertar os detalhes do seu exílio, marcado para dali a um mês. Para esta viagem, Gil também teve que pedir permissão, haja visto que ele e Caetano viviam em prisão domiciliar desde que deixaram a cadeia.

Gilberto Gil com Sandra Gadelha e Pedro Gil na casa de Maria Bethânia no Rio de Janeiro (1973)Instituto Gilberto Gil

“No dia em que deveriam voltar a Salvador, pela manhã, Gil e Sandra foram visitar a mãe de Gal, dona Mariah, levando a notícia de que finalmente poderiam sair do país. Durante a conversa, já sentindo a emoção da despedida, Gil começou a pensar na canção...

Gilberto Gil com Sandra Gadelha e Pedro Gil na casa de Maria Bethânia no Rio de Janeiro (1973)Instituto Gilberto Gil

“...Uma das primeiras imagens que lhe vieram à cabeça foi a Avenida Presidente Vargas, ainda com a decoração de carnaval, na manhã da Quarta-Feira de Cinzas em que ele e Caetano foram libertados”.

Carlos Calado, no livro Tropicália – A História de Uma Revolução Musical (1997) 

Gil já chegou de volta a Salvador com a música pronta para ser dedilhada no violão. “No avião mesmo eu terminei a música”, conta Gil, em Todas as Letras. Ele rabiscou o texto num guardanapo e, para se lembrar da melodia, recorreu a uma estrutura simples de memorizar: “quase de blues (...). Quando cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei, já estava comprometido afetivamente com a canção”.

Trecho manuscrito da música Aquele Abraço, de Gilberto Gil (1969)Instituto Gilberto Gil

Gilberto Gil e Caetano Veloso prestes à partir para o exílio (1969)Instituto Gilberto Gil

“Muito mais vivo em minha memória está o momento em que Gil me mostrou Aquele Abraço, canção que ele cantaria pela primeira vez em público naquele show. Estávamos na sala da casinha da Pituba e o samba me fez chorar. O brilho e a fluência das frases...

"... a evidência de que se tratava de uma canção popular de sucesso inevitável, o sentimento de amor e perdão impondo-se sobre a mágoa, e sobretudo o dirigir-se diretamente ao Rio de Janeiro, cidade que sinto tão intimamente minha por causa da estada de um ano...

"... entre os treze e os catorze – e tão minha em outro nível também, por ser, como diz João Gilberto, ‘a cidade dos brasileiros’ –, tudo isso me abalava fortemente e eu soluçava de modo convulsivo.”

Caetano Veloso, na autobiografia Verdade Tropical (1997)

Caetano Veloso e Gilberto Gil no show Barra 69, apresentado antes da partida para o exílio (1969-07-20)Instituto Gilberto Gil

Caetano Veloso se lembrava ainda do impacto que a música provocou em todos aqueles que estavam em sua apresentação, no show Barra 69

“A plateia também foi tomada pela música, e cantou-a com Gil como se já a conhecesse de muito tempo...

“...O lugar onde a ironia se punha nessa canção – que parecia ser um canto de despedida do Brasil (representado pelo Rio, como é tradição) sem sombra de rancor – fazia a gente se sentir à altura das dificuldades que enfrentava...

Caetano Veloso no show Barra 69, que apresentou com Gilberto Gil antes da partida para o exílio (1969-07-20)Instituto Gilberto Gil

“...Aquele Abraço era, nesse sentido, o oposto do meu estado de espírito, e eu entendi comovido, do fundo do poço da depressão, que aquele era o único modo de assumir um tom de ‘bola pra frente’ sem forçar nenhuma barra.”

Caetano Veloso

É uma música cantada no futuro do pretérito – o que tinha de ser aprendido, vivido, o que tinha de ir, foi; o que está por começar, a partir deste fim, desta despedida, é o que importa. É o final do carnaval, a banda passou; agora é daqui pra frente. E a partida de Gil para o exílio o privou do prazer de ver sua canção de adeus estourar nas paradas de sucesso.

Gilberto Gil em estúdio na gravação da música Vamos Fugir para o álbum Raça Humana (1984-04)Instituto Gilberto Gil

Aquele Abraço foi a última canção gravada pelo cantor no esquema improvisado pelo produtor Manoel Barenbein e o maestro Rogério Duprat para registrar as novas músicas dele, diante da proibição dos militares para que eles exercessem qualquer atividade relacionada ao trabalho artístico.

Gilberto Gil em estúdio na gravação da música Vamos Fugir para o álbum Raça Humana (1984-04)Instituto Gilberto Gil

Barenbein e Duprat realizaram sessões no Estúdio J.S., em Salvador - em que Gil fez as primeiras gravações, na mocidade -, para gravar a voz e, depois, colocar a orquestração no Rio de Janeiro e em São Paulo. Aquele Abraço acabou sendo registrada no Rio, às vésperas da viagem. 

Surgiu um hit

Os tropicalistas embarcaram para a Europa exatos sete dias depois do show Barra 69, e sete meses depois de terem sido presos, sem Gil ter ouvido a versão finalizada de Aquele Abraço. E também sem imaginar que este seria o seu maior sucesso até então, e um dos maiores de sua carreira. Foram dois meses no topo das paradas de sucesso do Brasil, com a vendagem do disco compacto ultrapassando a marca de 300 mil cópias vendidas, um número invejável para a época. Foi o segundo mais vendido dos discos compactos dele: uma das três gravações que ficaram em primeiro lugar nas paradas de sucesso durante maior tempo.

Gilberto Gil durante o exílio em Londres (1971)Instituto Gilberto Gil

Aquele Abraço termina sendo uma música-síntese do repertório pós-prisão de Gilberto Gil, que aponta para uma viagem futurista, anelando um futuro tecnológico, mas com uma consciência fincada no passado e nas raízes que descortinam o porvir.

Gilberto Gil em cena do filme O Demiurgo (1971)Instituto Gilberto Gil

Dentro desta revisão do passado-apontado-para-o-futuro, está Aquele Abraço, samba-louvação com o qual Gil, com graça e alegria, perdoa seu passado, para, em paz com o presente, conseguir libertar seu futuro.

Créditos: história

Pesquisa e redação: Ceci Alves
Montagem: Patrícia Sá Rêgo   

Créditos gerais 

Edição e curadoria:
Chris Fuscaldo / Garota FM Edições
Pesquisa do conteúdo musical: Ceci Alves, Chris Fuscaldo, Laura Zandonadi e Ricardo Schott 
Pesquisa do conteúdo MinC: Carla Peixoto, Ceci Alves e Chris Fuscaldo
Legendas das fotos: Anna Durão, Carla Peixoto, Chris Fuscaldo, Daniel Malafaia, Fernanda Pimentel, Gilberto Porcidonio, Kamille Viola, Laura Zandonadi, Lucas Vieira, Luciana Azevedo, Patrícia Sá Rêgo, Pedro Felitte, Ricardo Schott, Roni Filgueiras e Tito Guedes
Edição de dados: Isabela Marinho e Marco Konopacki
Revisão Gege Produções: Cristina Doria
Agradecimentos: Gege Produções, Gilberto Gil, Flora Gil, Gilda Mattoso, Fafá Giordano, Maria Gil, Meny Lopes, Nelci Frangipani, Cristina Doria, Daniella Bartolini e todos os autores das fotos e personagens da história
Todas as mídias: Instituto Gilberto Gil 


*Todos os esforços foram feitos para creditar as imagens, áudios e vídeos e contar corretamente os episódios narrados nas exposições. Caso encontre erros e/ou omissões, favor entrar em contato pelo e-mail atendimentogil@gege.com.br

Créditos: todas as mídias
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