Do Instituto Gilberto Gil
Entrevista: Chris Fuscaldo*, escritora, jornalista e pesquisadora musical
Depoimento em que Caetano Veloso atribui a idealização do Tropicalismo a Gilberto Gil (Maio de 2020)Instituto Gilberto Gil
'O Tropicalismo se deve a Gilberto Gil'
Caetano Veloso gravou um depoimento explicando o movimento tropicalista para acervo do amigo e parceiro. Em sua fala, o baiano atribui a idealização do Tropicalismo ao amigo Gilberto Gil.
Quais são suas lembranças das primeiras vezes que você viu Gilberto Gil na TV? O que passou para a história foi que sua mãe costumava chamar você para ver “aquele preto que você gosta”.
Gilberto Gil e Caetano Veloso durante a TropicáliaInstituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Fiquei orgulhoso de Neguinho do Samba, o saudoso inventor da batida do Olodum e fundador da Didá, ter composto uma canção com a frase que minha mãe repetiu tantas vezes. Conto isso em meu livro Verdade Tropical e já tinha dito também em entrevistas.
Gil aparecia num programa de TV à tarde. Um programa da TV Itapoã, a emissora local. Eu adorava o jeito dele e admirava a precisão que ele tinha ao tocar o violão.
O que te chamou a atenção primeiramente na musicalidade dele? Gil, naquela época, tinha experiência com jingles. A capacidade de comunicação dele te impressionou?
Gilberto Gil em apresentação no início da carreira (1966)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Os jingles não foram a primeira coisa que ouvi dele, mas logo os conheceria. Ouvi, antes, ele tocando algo da bossa nova ou coisas dele mesmo já.
O sorriso dele, as sobrancelhas muito definidas e bem desenhadas pela genética, tudo fazia dele uma figura que se comunicava fácil e agradavelmente com qualquer pessoa. A qualidade da música que ele produzia levava isso para lugares elevados e profundos.
Vocês foram apresentados por Roberto Santana. Sobre o que conversaram nesse primeiro encontro?
Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa (1967)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Falamos logo muito de música. Eu era fã dele mas ele não me conhecia, no entanto, ele pareceu tão interessado em mim quanto eu nele. Naturalmente era seu temperamento receptivo que o levava a ser assim com quem quer que ele encontrasse e que se dirigisse a ele de modo amável.
Mas foi mais do que isso. Acho que já falamos de Carlos Lyra (era uma conversa de quem se interessava pela bossa nova e por tudo o que ela representava na modernização da nossa música e do Brasil). Menciono Lyra porque João Gilberto e Tom Jobim devem ter sido lembrados de cara.
Gilberto Gil com Tom Zé, Piti e Roberto Santana na década de 1960Instituto Gilberto Gil
Mas tudo começou com minha declaração de admiração pelo que fazia Gil ele mesmo. Pelo que eu via dele na televisão.
Roberto Santana, que era amigo de ambos, já sabia o quanto eu admirava "Beto" e já disse algo sobre isso no momento da apresentação. A conversa sobre música já pareceu me pôr aos olhos de Gil como se eu fosse um colega dele, embora eu mal soubesse tocar um dó maior no violão.
Em seu primeiro disco individual, um texto da contracapa traz a frase: "Gil, hoje não tem sopa na varanda de Maria". Como eram os encontros semanais na casa da Maria Muniz?
Gilberto Gil com equipe do espetáculo Arena Canta Bahia (1965-12-01)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Maria Muniz, uma atriz da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, mulher muito original e inteligente, gostava de nós, que aparecemos na cena soteropolitana e que enriquecíamos o movimento surgido na Bahia nos anos 1950, estimulado pelo reitor da UFBA, Edgard Santos.
Gilberto Gil e Caetano Veloso no espetáculo Arena Canta Bahia (1965-12-01)Instituto Gilberto Gil
Maria reunia a nossa turma para tomar sopa, conversar e cantar na varanda de sua casa no Boulevard Suíço - rua onde eu próprio tinha morado antes de nossa família se mudar para o fim de linha de Nazaré.
Toque para explorar
Campo da Pólvora
Esse dito "boulevard" parecia-se mais com um "crescent" londrino, pequena rua com curva acentuada, mas era parte do mesmo bairro de Nazaré, em frente ao Campo da Pólvora.
Os Doces Bárbaros em entrevista coletiva (1976)Instituto Gilberto Gil
A gente cantava coisas de que gostava, Gal cantava tocando violão, mesmo Bethânia eventualmente fazia isso, Gil tocava muito e mostrávamos canções novas que íamos fazendo.
Me lembro de Gil cantando Bem Devagar, de mim cantando Coração Vagabundo e um samba que fiz para um show que o namorado de Maria sugeriu que eu fizesse na boate Anjo Azul, o ponto mais sofisticado da Salvador da época.
Compilação de imagens amadoras em Super 8, sem som, da família e amigos de Gilberto Gil e de shows e carnaval baiano Compilação de imagens amadoras em Super 8, sem som, da família e amigos de Gilberto Gil e de shows e carnaval baiano - Parte 1 (Fevereiro de 1974)Instituto Gilberto Gil
A música se chama Clever Boy Samba e, curiosamente, serviu de modelo para Alegria, Alegria, que fiz anos depois. Mas falávamos de peças do Teatro dos Novos e da Escola de Teatro, de filmes do pré-cinema novo (ou da nouvelle vague ou de Fellini).
Gilberto Gil durante no lançamento do DVD Terra em Transe, versão restaurada do filme de 1967 (2006-04-10)Instituto Gilberto Gil
Falávamos também de artigos do jornal Diário de Notícias, cuja página cultural já era liderada por Glauber.
Era muito bom. E a sopa era sempre boa.
Compilação de imagens amadoras em Super 8, sem som, da família e amigos de Gilberto Gil e de shows e carnaval baiano Compilação de imagens amadoras em Super 8, sem som, da família e amigos de Gilberto Gil e de shows e carnaval baiano - Parte 2 (Fevereiro de 1974)Instituto Gilberto Gil
O livro do Carlos Calado, Tropicália: A História de uma Revolução Musical, diz que Gil foi um dos grandes responsáveis por você ter assumido a música profissionalmente. É verdade?
Caetano Veloso em foto da década de 1980 (1982)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Eu adorava cantar canções desde menino e até fazia umas musiquinhas ao piano, em Santo Amaro. O violão me pareceu impossível. Aprendi uns três acordes. Mas vendo Gil tocar, desenvolvi minha capacidade de compor e tocar canções que iam um tanto além do meu restrito talento.
Eu fazia, de vez em quando, uma ou outra pergunta a ele sobre batidas e harmonias. Gil tinha gostado de minha música, por assim dizer, sem ouvir outra coisa que minhas opiniões e observações.
Surgiu o convite do grupo Teatro dos Novos (ex-alunos da Escola de Teatro da UFBA) para fazermos uma apresentação na semana de inauguração do Teatro Vila Velha, construído por esse grupo para suas próprias apresentações, e eu tinha um punhado de músicas compostas.
Tom Zé, Gilberto Gil e Caetano Veloso na gravação do programa Som Brasil Especial Tropicália, da TV Globo (1997-11-11)Instituto Gilberto Gil
Eu me animei a contribuir com o crescimento da produção e do prestígio do grupo formado fundamentalmente por Gal, Bethânia, Gil e eu (sem que se esqueçam nomes de Tom Zé, Perna Fróes, Alcivando Luz, Djalma Correia...).
Gilberto Gil em show na década de 1970 (Década de 1970)Instituto Gilberto Gil
No entanto, eu fazia isso sempre com a decisão íntima de tentar fazer cinema e deixar a música para os verdadeiros músicos.
Gilberto Gil com equipe da Primeira Feira Paulista de Opinião (1968-06-01)Instituto Gilberto Gil
Quando, já com a coisa adiantada, com Bethânia estourada nacionalmente, nós todos fazendo espetáculo dirigido por Augusto Boal em São Paulo, eu disse a Gil que não ficaria mais comprometido com a música, e ele me respondeu: "Se você deixar de fazer música, eu também deixo".
Gilberto Gil com amigosInstituto Gilberto Gil
Isso se repetiu de modo semelhante alguns anos depois, no Tropicalismo. Então, sim, só faço música por causa de Gil: ele me ensinou o que eu era capaz de aprender e, depois, me impediu de abandonar o desafio.
Outro dia, em um encontro na Gege Produções, falamos sobre o primeiro show de Gil em Salvador, no Teatro Vila Velha, em 1965, que você dirigiu. O show se chamava Inventário e tinha uma canção inédita dele chamada Trovoada. Você lembra? Consegue contar como planejaram, como foi o show, o que tinha no repertório e como foi assumir a direção do amigo?
Toque para explorar
Caetano Veloso:
Eu sempre rio de Gil por ele ter uma memória fraca: a minha sempre foi ótima. Me lembro de quase tudo com detalhes e sem erro. Gil lembra errado e esquece muito. Mas nesse caso do show dele no Vila Velha eu, não sei por que, não consigo ter nenhuma lembrança clara ou segura.
Caetano Veloso e Gilberto Gil no show Barra 69, apresentado antes da partida para o exílio (1969-07-20)Instituto Gilberto Gil
Você cita a canção Trovoada: eu não me lembro de nada com esse título. Para mim é misterioso que eu tenha esquecido tanto desse show. Me lembro dos shows que fizemos em conjunto e sei que planejamos começar a fazer shows solo.
Foto de Maria Bethânia enviada a Gilberto GilInstituto Gilberto Gil
O primeiro foi o de Bethânia, em 64, antes de ela vir para o Rio fazer o Opinião. Lembro do cenário de Calazans Neto, feito para a montagem de Eles Não Usam Black-Tie, que mantivemos no show de Bethânia. Ela já cantou Opinião e Acender as Velas à frente de um pedaço de favela.
Caetano Veloso e Dedé GadelhaInstituto Gilberto Gil
Me lembro do meu, de que Dedé participava e que Duda Machado roteirizou para mim. E de que Gal foi a única dos quatro a não fazer um solo no Vila. Mas só me lembro de que houve o de Gil e de que eu participei da feitura. Mas nenhum detalhe.
Como foi o momento em que vocês tiveram as ideias que geraram o Tropicalismo? A literatura conta que Gil, já fã de Beatles, esteve em Caruaru, foi bastante influenciado pela música de lá, e procurou você para conversar. Foi nessa ordem?
Gal Costa na estreia do programa Divino Maravilhoso (10/28/1968)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Sempre conversávamos. Gil tinha ficado fascinado pela gravação de Strawberryfields Forever dos Beatles. Eu, morando no solar da fossa, ouvia muitas coisas sobre cultura de massa, ditas por Rogério Duarte, citando Edgar Morin e Walter Benjamin.
Elis Regina e Maria Bethânia na década de 60Instituto Gilberto Gil
Ouvia muito José Agrippino de Paula, o escritor que fez também peças e filmes. Um dia, Bethânia me disse que eu precisava ver o programa Jovem Guarda, de Roberto e Erasmo Carlos: "A MPB está sem vitalidade; na Jovem Guarda tem muito mais vitalidade poética".
Toque para explorar
Gil foi passar uma temporada no Recife. Quando voltou, sob impacto da Banda de Pífanos de Caruaru, veio com um programa bastante definido na cabeça. E, como de costume, falou primeiro comigo.
Gilberto Gil recebe integrantes da Banda de Pife Princesa do Agreste, de Pernambuco, no seu estúdio durante ensaio para o show Futurível (2010-11-01)Instituto Gilberto Gil
Tudo o que ele dizia como que sintetizava as questões que as falas de Rogério Duarte, José Agrippino e Bethânia sugeriam: "Estamos sob um regime violento e a nossa música não responde com a violência correspondente...
"...Os Beatles e a banda da Caruaru têm tudo a nos ensinar; somos parte da cultura de massas, não podemos continuar numa atitude defensiva e num nacionalismo enfraquecedor...
Gilberto Gil e Roberto Carlos no programa Jovem Guarda (1967)Instituto Gilberto Gil
"...Temos que prestar atenção em Roberto Carlos e fazer algo como os Beatles fazem, só que a partir de nossa própria história."
Fiquei excitado! Daí nasceu tudo o que, mais de um ano depois, veio a ser apelidado de Tropicalismo.
Fale da primeira música que vocês compuseram juntos. Como é compor com o Gil?
Caetano Veloso:
Temos poucas parcerias. Isso se deve ao fato de ambos fazermos letra e música. Qual terá sido minha primeira parceria com Gil? Acho que foi No Dia Em Que Eu Vim-me Embora. Eles, que também está no meu primeiro álbum, é nossa. Beira-mar é uma parceria que acho muito bonita.
E há coisas nos Doces Bárbaros (ele fez trecho da letra de São João Xangô Menino) e, depois, no Tropicália 2. Haiti é um caso especial: eu tinha feito toda a letra (o "rap") e também a música, incluindo a mudança para o refrão.
Tropicália 2 Livro de partituras com canções do álbum Tropicália 2, de Gilberto Gil e Caetano Veloso (1993)Instituto Gilberto Gil
Mas eu não tinha uma batida, uma levada. Eu tocava no violão apenas os acordes em cada tempo. Gil criou aquele riff que vai sob o canto falado e que, no fim das contas, caracteriza a canção. Incluí o nome dele como coautor e assim registramos a música.
Letra da música Chega de Mágoa, manuscrita por Gilberto Gil Página 1 (1985)Instituto Gilberto Gil
Gosto de todas as músicas que fizemos juntos e, claro, gostaria de fazer mais. Adoro Chega de Mágoa, que foi composta por um grupo de que eu também fiz parte mas que deve 80 por cento de sua composição musical a Gil. Ele pega o violão e a coisa sai fácil.
É verdade que você encorajava muito o Gil na época da Tropicália, e que ele chegou até mesmo a ficar com certo medo das inovações que vocês criavam serem entendidas como provocações?
Gilberto Gil no III Festival da Música Popular Brasileira (Outubro de 1967)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Gil tem uma personalidade misteriosa. Eu já estava gravando o meu álbum tropicalista com arranjos de Júlio Medaglia e Damiano Cozzella, Rogério Duprat já tinha voltado pra São Paulo e entrado em contato com Gil, apresentando-o aos Mutantes.
Gilberto Gil e Os Mutantes em ensaio para o III Festival da Música Popular Brasileira (1967)Instituto Gilberto Gil
Eu já tinha cantado Alegria, alegria com os Beat Boys, o que levou a plateia a me vaiar no começo da canção (que depois conquistou a maioria e virou um sucesso de rádio), e Gil, com Domingo no Parque, já havia ensaiado com os Mutantes sob a batuta divina de Duprat.
Gilberto Gil no III Festival da Música Popular Brasileira (1967)Instituto Gilberto Gil
Na hora do evento, Gil amarelou e ficou no hotel, enrolado no cobertor, com medo. Foi preciso o dono e diretor da Record (que era Paulo Machado de Carvalho - o Bispo Macedo ainda não sonhava nem criar a Igreja Universal) chamá-lo minutos antes de a música ser anunciada.
Ele foi e a canção foi um sucesso, tendo sido respeitada desde a introdução.
Depois, meu disco com Tropicália e Superbacana e tudo o mais já estar tocando no rádio e eu cantando em programas do Chacrinha, foi planejada uma noite tropicalista num dancing de São Paulo.
Caetano Veloso na estreia do programa Divino Maravilhoso (10/28/1968)Instituto Gilberto Gil
Grande figuras da Rádio Nacional participariam (Dalva de Oliveira, Linda e Dircinha Batista, Grande Otelo, Aracy de Almeida...). Ensaiamos à tarde e, no começo da noite, Vicente Celestino, o cantor de estilo operístico de quem eu gravei Coração Materno, morreu de um infarto.
As irmãs Batista e Aracy exigiam que o show fosse feito. A viúva de Celestino, a cineasta e cantora Gilda de Abreu, pedia que seguíssemos com o espetáculo, dizendo que o sonho do marido sempre foi morrer cantando - e Gil, amedrontado, não queria ir de jeito nenhum.
Eu tive de ir até o apartamento dele e falar de modo enfático e eloquente até que ele admitisse ir. Nos dois casos, tanto nos bastidores quanto na hora de se apresentar e cantar, ele não demonstrava nem um traço de que tinha estado apavorado minutos antes.
Como diz o livro 1968: o Ano Que não Terminou, Gilberto Gil estava na sua casa no dia da prisão pelos militares, dormindo no quarto ao lado, enquanto você era detido. Ele saiu de lá e foi para o próprio apartamento para esperar a polícia chegar. Como viu essa prova de amizade dele?
Gilberto Gil e Caetano Veloso prestes à partir para o exílio (1969)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Os agentes da Polícia Federal foram me buscar e disseram que iriam à casa de Gil para pegá-lo. Eles não diziam que estavam efetuando uma prisão, alegavam que os militares queriam esclarecimentos. Mas eu tive medo ao ouvir um me dizer para levar escova e pasta de dentes.
Eu achava que se eles encontrassem o outro "suspeito" na casa do primeiro abordado tudo poderia se tornar mais complicado. Me lembro de ter pedido a Dedé que dissesse a Gil que fosse pra casa esperar o anunciado. Eu poderia ter dito que ele fugisse ou se escondesse.
Gilberto Gil com Sandra Gadelha e Pedro Gil na casa de Maria Bethânia no Rio de Janeiro (1973)Instituto Gilberto Gil
Gil tinha começado um namoro com Sandra, irmã de Dedé, então minha mulher. Ela tinha ido passar uns dias em São Paulo conosco. Começaram um romance e Gil dormiu com ela em nosso apartamento, que era grande. Dedé avisou a Gil sem que os policiais notassem.
Passeata dos Cem Mil nos tempos de ditadura militar, da qual Gilberto Gil participou (1968-06-26)Instituto Gilberto Gil
Gil foi pra casa e esperou. Quando paramos na porta do prédio dele, senti culpa, como se eu o estivesse prendendo. Gil demonstrou uma coragem firme e calma - o que durou todo o tempo da prisão - de que eu não era capaz àquela altura.
Que outras provas de amizade Gil te deu?
Gilberto Gil e Caetano Veloso na praiaInstituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Sempre fomos, desde aquele encontro na Rua Chile, bem mais do que amigos. Havia a certeza de um encontro de companheirismo quase missionário. Sinto isto até hoje. Nós dois sempre conseguimos manter esse algo lá, aí, aqui.
Gilberto Gil com Pedro Gil e Caetano Veloso, após saída da prisão (1976)Instituto Gilberto Gil
Nem fomos como em geral amigos são, com compartilhamento de confidências e laços de formal lealdade. É sempre alguma coisa além disso. Somos mais irmãos e amantes do que amigos. Há um respeito que passa por cima de nossas próprias eventuais baixezas.
Jorge Ben, Gilberto Gil e Caetano Veloso no encerramento do evento Phono 73 (1973)Instituto Gilberto Gil
Como eu disse uma vez: eu não acredito em Deus mas acredito em Gil e Gil acredita n'Ele. Mas na verdade há uma complementaridade que nos põe frequentemente em posições opostas. Quando ele descobre uma coisa (em geral antes de mim) eu não a estou vendo.
Gilberto Gil e Caetano Veloso em show da turnê do álbum Tropicália 2 (1993)Instituto Gilberto Gil
Quando vejo, ele parece tê-la esquecido ou se desinteressado dela. E não é só no tempo. Os lugares se revelam coisas muito distintas pra ele e pra mim. Mas o que vimos fazendo, sem ter planejado, é aprender a independer de tudo isso.
Gilberto Gil e Caetano Veloso em show beneficente no Canegie Hall, em Nova York (1989)Instituto Gilberto Gil
E cada um ser o homem velho que pode e merece ser. Sem simetrias. Mas não podemos é apagar o que nos trouxe até aqui.
Após o exílio, sentiram que houve alguma separação entre os trabalhos de vocês?
Gilberto Gil e Caetano Veloso em encontro na casa de Dedé Gadelha na década de 1980 (Década de 1980)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Fiquei na Bahia por três anos. Só saía para fazer shows e voltava rápido. Meu recomeço foi com Araçá Azul, disco feito em poucos dias num estúdio de São Paulo, sem produtor e com minha decisão de nem sequer compor canções antes do período de gravação. Foi um disco experimental.
Gil voltou com o magnífico Expresso 2222, que tem a Pipoca Moderna da banda de pífanos, tem Chiclete com Banana - e tem Ele e Eu, que fala sobre nossa complementaridade e situações de oposição simétrica. Diz tudo o que eu tentei dizer numa das respostas acima.
Gilberto Gil e Caetano Veloso na década de 1970 (1979)Instituto Gilberto Gil
Pelos anos 1970, radicalizei na rebeldia com a criação da Outra Banda da Terra, com a qual fiz uns cinco discos sem produtor entrar no estúdio, tudo em atmosfera anárquica com técnica sonora brazuca gritante. Gil foi, como muitos artistas nossos, para o lado "LA" (Los Angeles).
Gilberto Gil e Marco Mazzola recebem o disco de platina pelo compacto da música Não Chore Mais (1979)Instituto Gilberto Gil
Mas isso era também parte da complementaridade. Me lembro de não ter gostado de Realce. Eu tinha horror de palavras como esse título e o clima de brilhos nas noites. Minha Odara tinha sido uma adesão ao gosto pela dança noturna mas em contraste com seus aspectos compulsivos.
Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Caetano Veloso à época do show Doces Bárbaros (1976)Instituto Gilberto Gil
E meu primeiro disco com A Outra Banda da Terra chocou críticos e afastou compradores. Mas insistimos. Gil e Gal foram identificando-se com o pop "bem gravado". Eu me sentia mais próximo a Bethânia nisso. Mas nenhuma dessas nuances provocou afastamento ou desconforto entre nós.
Gil foi seu muso em canções como Gilberto Misterioso. Como é poder dedicar uma música a um grande amigo?
Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Maria Bethânia em show de reunião dos Doces Bárbaros no Parque Ibirapuera (2002-12-07)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
É sempre uma delícia afetiva poder fazer uma canção para um amigo. No caso dessa que você citou, foi um quase milagre.
Gilberto Gil e Caetano Veloso na porta do hotel em Londres, para o show da turnê europeia Dois Amigos, Um Século de Música (2015-07-01)Instituto Gilberto Gil
Lendo o livro de Souzândrade, o poeta oitocentista maranhense que Augusto e Haroldo de Campos ressuscitaram criticamente, encontrei esse trecho que parecia descrever Gil: "Gil engendra em Gil rouxinol".
Caetano Veloso e Gilberto Gil no carnaval da BahiaInstituto Gilberto Gil
Fiz uma pequena peça em que eu mesmo toco o piano (era o Araçá Azul!), repetindo o pequeno verso, e intitulei-a com o apelido que eu tinha dado a Gil havia muitos anos: Gilberto Misterioso.
Flora Gil com Caetano Veloso no lançamento do filme Eu, Tu, Eles (2000-08-18)Instituto Gilberto Gil
Fiquei muito feliz que, num disco de gravações minhas feitas por artistas japoneses, essa faixa tenha sido escolhida por um deles: ouvida ali (acho que com uma limpidez sonora nipônica que melhora a qualidade da peça), a canção me pareceu estar à altura do homenageado.
Como são os diálogos hoje entre você? Há algum ponto de discordância folclórico?
Gilberto Gil e Caetano Veloso no show Tropicália Duo (1994)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Nos últimos tempos não tenho tido quase nenhum diálogo direto com Gil. Uma noite ele me telefonou - para o celular de um filho meu ou colega de trabalho, pois não tenho celular -, eu no carro e ele dizendo que tinha relido Verdade Tropical e sentido forte vontade de me ver.
Gilberto Gil com os amigos Caetano Veloso e Regina Casé (1989)Instituto Gilberto Gil
No verão anterior a este último, estivemos juntos na casa de Regina Casé em Salvador e conversamos um pouco. Depois disso, faz uma hora que eu não vejo Gil nem falo com ele.
Gilberto Gil e Caetano Veloso em show da turnê do álbum Tropicália 2 (1993)Instituto Gilberto Gil
Curiosamente, esta entrevista me foi pedida quando eu estava cogitando escrever um email a ele atualizando muitas coisas. Inclusive coisas fundamentais de nossa formação na Bahia. Ainda estou com esse intuito.
Gostaria de ter uma fala sua que defina o que foi comemorar os 50 anos de amizade no palco.
Gilberto Gil e Caetano Veloso em show para o Festival Jazz à Vienne, da turnê europeia Dois Amigos, Um Século de Música (2015-07-03)Instituto Gilberto Gil
Caetano Veloso:
Foi muito bom. Sofri um pouco nos primeiros shows por causa de minha incapacidade técnica diante da exuberância musical de Gil.
Gilberto Gil e Caetano Veloso em show da turnê Dois Amigos, Um Século de Música em Portugal (2015-07-31)Instituto Gilberto Gil
Mas fui, sempre, profundamente, feliz de poder ouvir Não Tenho Medo da Morte tantas noites diferentes, e de cantar junto com ele algumas coisas em que nossas vozes soavam bem juntas.
Gilberto Gil e Caetano Veloso na gravação do programa Amigos, Sons e Palavras, exibido pelo Canal Brasil, da Globosat (2018-04-18)Instituto Gilberto Gil
Entrevista*, edição de vídeo e montagem: Chris Fuscaldo (*colaborou Ricardo Schott)
Créditos gerais
Edição e curadoria: Chris Fuscaldo / Garota FM Edições
Pesquisa do conteúdo musical: Ceci Alves, Chris Fuscaldo, Laura Zandonadi e Ricardo Schott
Pesquisa do conteúdo MinC: Carla Peixoto, Ceci Alves e Chris Fuscaldo
Legendas das fotos: Anna Durão, Carla Peixoto, Chris Fuscaldo, Daniel Malafaia, Fernanda Pimentel, Gilberto Porcidonio, Kamille Viola, Laura Zandonadi, Lucas Vieira, Luciana Azevedo, Patrícia Sá Rêgo, Pedro Felitte, Ricardo Schott, Roni Filgueiras e Tito Guedes
Edição de dados: Isabela Marinho e Marco Konopacki
Revisão Gege Produções: Cristina Doria
Agradecimentos: Gege Produções, Gilberto Gil, Flora Gil, Gilda Mattoso, Fafá Giordano, Maria Gil, Meny Lopes, Nelci Frangipani, Cristina Doria, Daniella Bartolini e todos os autores das fotos e personagens da história
Todas as mídias: Instituto Gilberto Gil
*Todos os esforços foram feitos para creditar as imagens, áudios e vídeos e contar corretamente os episódios narrados nas exposições. Caso encontre erros e/ou omissões, favor entrar em contato pelo e-mail atendimentogil@gege.com.br
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