Por razões que se prendem com as vicissitudes da constituição do acervo, e talvez pelos muitos isolamentos que a geografia ditou à cidade, os objetos “exóticos” que a partir dos primeiros anos do séc. XVI chegaram a Portugal, provenientes sobretudo da África e da Ásia, e que hoje se distribuem por diversas coleções europeias, são relativamente escassos nas coleções deste museu.
No entanto, a píxide em marfim - uma peça da maior importância, produzida na Serra Leoa no primeiro terço do séc. XVI - justificava por si só que o percurso expositivo incluísse uma abordagem ao tema da diáspora.
Procedente da igreja de São Francisco das Chagas, Orgens, Viseu, a píxide sapi-portuguesa é uma das mais notáveis peças afro-portuguesas existentes em coleções nacionais.
Embora os consumidores dos produtos africanos preferissem especialmente os olifantes, os úteis e valiosos garfos, colheres e saleiros, feitos no mesmo material, também adquiridos na Serra Leoa, onde «homens muito subtis e engenhosos fazem obras de marfim muito maravilhosas de ver de todas as cousas que lhes mandam fazer», é certo que a presença da iconografia cristã, numa estrutura narrativa que denuncia diretamente a matriz europeia, remete alguns desses objetos para as práticas do culto cristão.
Nesta píxide de forma circular, composta por um único volume esférico rematado por uma tampa tronco-cónica, as cenas narrativas, em relevo, por certo inspiradas em gravuras, configuram o ciclo da Natividade de Jesus, nomeadamente a Árvore de Jessé, a Anunciação, a Visitação, a Natividade, a Adoração dos Anjos e dos Pastores, a Adoração dos Reis Magos, a Apresentação no Templo e a Fuga para o Egipto.
Ainda que a imagem de vulto que servia de pega da tampa se encontre fragmentada, não há dúvida que se trata da Virgem com o Menino, eventualmente ladeados por dois anjos. A incompletude destas figurações, em virtude do estado de conservação em que a peça chegou aos nossos dias, completa-se através da comparação com uma outra muito semelhante, que se conserva numa coleção particular. Ainda na tampa, a inscrição “Ave Grasia P” (Ave Gracia Plena), uma invocação mariana, mistura-se com a emblemática manuelina, designadamente com as armas de Portugal e com a cruz da Ordem de Cristo, de que o Rei D. Manuel I era administrador, enquanto os pés assumem a forma de leões heráldicos.
A píxide que se guarda no Museu faz parte de um grupo remanescente de três caixas de hóstias em marfim, tudo o que parece ter sobrevivido da produção ebúrnea destinada a uma utilização litúrgica, encontrando-se a segunda na Walters Art Gallery (Baltimore), e a terceira numa coleção privada.