OS SERTÕES DE MAUREEN
Filha de um diplomata argentino e de uma pintora inglesa, Maureen viveu uma infância itinerante entre Inglaterra, Estados Unidos, Dinamarca, Colômbia, Argentina e Suíça. Esse desenraizamento cultural, apontado por ela mesma, começou a terminar quando, em 1953, mudou-se para São Paulo em companhia do fotógrafo espanhol José Antonio Carbonell, seu primeiro marido. Após algumas temporadas no exterior – em Paris, em 1955, onde estudou pintura com André Lhote; em Nova York, dois anos depois, para frequentar o Arts Students League; e na Venezuela, em 1959 – Maureen retornou ao Brasil, onde vive até hoje. Começa a se dedicar mais intensamente à fotografia, terminando por abandonar a pintura. Desta, porém, restou seu fascínio expressionista pelo claro-escuro e pelos enquadramentos surpreendentes.
A João Guimarães Rosa
People at home, MG. Brazil (circa 1966), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
“Nasci aqui.
Meu pai me deu minha sina.
Vivo, jagunceio...”
Tudo em mim,
minha coragem: minha pessoa,
a sombra de meu corpo no chão,
meu vulto.
O que eu pensei forte,
as mil vêzes: que eu queria que se vencesse;
e queria quieto:
feito uma árvore de toda altura!"
Gente de Andrequicé, Minas Gerais (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Portrait of Manuel Nardi, inspiring tale "Manuelzão and Miguilim" written by Guimarães Rosa, Andrequicé, MG. Brazil (circa 1966), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
"Vou lhe falar.
Lhe falo do sertão.
Do que não sei.
Um grande sertão! Não sei.
Ninguém ainda não sabe.
Só umas raríssimas pessoas ...
Sertão velho de idades ...
Sertão sendo do sol ...
Um espaço para os de meia-razão."
Gente em suas casas perto de Lassance (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
People at home, MG. Brazil (circa 1966), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Gente em suas casas perto de Lassance (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Gente em suas casas perto de Lassance (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Forno para queima de carvão (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Boy near the furnace for burning charcoal, Lassance, MG. Btazil (circa 1964), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Casa de taipa (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Comecei a conhecer os sertões pelas suas veredas. Tudo começou em 1963, quando ganhei de um amigo um exemplar de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa – não sem a observação de que talvez não conseguisse compreender a linguagem especialíssima do autor. Não só compreendi como mergulhei nas águas daquele mar de palavras – o sertão não viraria mar? –, instigada a investigar a relação direta de Rosa com os gerais de Minas Gerais.
Desloquei-me para lá e, ao voltar de cada viagem, ia visitar o escritor, então chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamaraty. Levava, a cada encontro, um calhamaço de fotografias captadas nas terras do autor de Sagarana, que, atrás de cada uma anotava detalhes – nome, idade, solteiro, casado ou viúvo, lugar do encontro, como e quando etc. –, recebendo, através das imagens, mensagens dos gerais.
No final de nossas reuniões, ele sempre me acompanhava até o elevador e me desejava uma boa próxima viagem, dizendo estar certo de que eu como irlandesa iria compreender os eflúvios poéticos dos gerais, devido a semelhanças entre aquela região e a Irlanda (“Irlandesa cigana” foi, aliás, como ele me apelidou, talvez pelos cabelos longos, roupas amplas, sandálias no pé?).
Anos depois desses nossos encontros, fui visitar sua viúva, dona Aracy, no prédio onde eles tinham morado, em Copacabana, Posto 6. Lá, ela me levou até uma pequena sala. Entre os rochedos e o mar, e contou que fora ali que Rosa escrevera seu Grande sertão. “Noite após noite”, confidenciou-me, “eu levava para ele duas ou três trocas de pijama, pois enquanto escrevia, ele transpirava muito, banhando-se em suor. Ele me dizia que recebia a obra assoprada, sendo ele apenas receptor.”
Maureen Bisilliat
Alpendre com cuias e gamela (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
"O barulho das coisas rompendo e caindo,
e estralando surdo,
desamparados, lá dentro, Sertão!"
Extraindo o polvinho da mandioca (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Boiada em Curvelo no início da viagem aos gerais (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Boiada em Curvelo (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
"O mundo estava vazio. Boi e boi. Boi, boi e campo.
Era uma terra diferente, louca, e lagoa de areia.
Onde é que seria o sobejo dela, confinante?
O Sol vertia no chão, com sal, enfaiscava. De longe vez, capins mortos; e uns tufos de seca planta - feito cabeleira sem cabeça"
Noiva (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
"Eu sei.
Sempre sei, realmente.
Só o que eu quis, todo o tempo,
o que eu pelejei para achar,
era uma só coisa – a inteira –
cujo significado e vislumbrado
dela eu vejo que sempre tive.
A que era: que existe uma receita,
a norma de um caminho certo, estreito,
de cada uma pessoa viver – e essa pauta
cada um tem – mas a gente mesmo,
no comum, não sabe encontrar;
como é que, sozinho, por si,
alguém ia poder encontrar e saber?"
Padrinhos de casamento, no dia de Santo Antônio (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Recém-casados (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Newlyweds, MG. Brazil (circa 1966), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Recém-casados (1966 circa), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
A partir do intenso contato com as terras e personagens de Guimarães Rosa, Maureen seguiu buscando uma comunhão com o sertão literário até fechar o que ela chama de "triângulo literário, místico, telúrico, mítico e sertanejo - Guimarães, Euclides, Suassuna".
Euclides da Cunha, Maureen Bisilliat: um sertão
"O vaqueiro criou-se em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias – tendo sobre sua cabeça, como ameaça perene, o Sol, arrastando de envolta no volver das estações, períodos sucessivos de devastações e desgraças.
Fez-se homem, quase sem ter sido criança (...)" Os Sertões, de Euclides da Cunha
Cowboy resting after vaquejada, Morada Nova, CE. BRazil (circa 1970), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Cowboy resting after vaquejada, Morada Nova, CE. BRazil (circa 1970), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Cowboy resting after vaquejada, Morada Nova, CE. BRazil (circa 1970), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
"(...) Compreendeu- se envolvido em cobrate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de toda as energias.
Fez-se forte, espero, resignado e prático. Aprestou-se, cedo, para a luta. O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega"
Cowboy resting after vaquejada, Morada Nova, CE. BRazil (circa 1970), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Em 1982 é publicado "Sertões, Luz e Trevas", um fotolivro inspirado por duas partes - "A Terra" e "O Homem" - do clássico de Euclides da Cunha "Os Sertões", lançado 80 anos antes.
Cowboys resting after vaquejada, Morada Nova, CE. BRazil (circa 1970), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Cowboy resting after vaquejada, Morada Nova, CE. BRazil (circa 1970), de Bisilliat, MaureenInstituto Moreira Salles
Ariano Suassuna, Maureen Bisilliat: guerreiros do imaginário
Em 1982 Maureen Bisilliat descobre o "Romance d´A Pedra do Reino" (1971), de Ariano Suassuna. Encantada com a linguagem ibérico-sertaneja do autor, convida-o para prefaciar o fotolivro "Sertão, Luz e Trevas". Suassuna aceita, mas em vez de prefácio, devolve 100 páginas de uma ficção protagonizada pela própria Maureen, "Maurina e a lanterna mágica", impondo uma condição: "ou publica tudo, ou nada". O escrito fica guardado, assim como a confirmação de uma profunda conexão com o realismo na fronteira do fantástico de Suassuna. Posteriormente Maureen passaria a identificar o ensaio "O cortejo Luminoso", retrato dos brincantes do Reisado na Alagoas de 1970, como uma representação plástica - no momento dos registros apenas intuída - do universo armorial. Estava fechado seu triângulo sertanejo.
Figurantes de auto popular no ciclo do reisado (1970), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Rainha e figurantes de um auto no ciclo do reisado (1970), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
"Ave Musa incandescente,
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
O Trono do meu clarão:
cantes as Pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu chão!"
"Novel of the Stone of the Kingdom and the prince of the blood of the back and forth", by Ariano Suassuna.
Figurante de auto popular no ciclo do reisado (1970), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
"(...) contava ele uma viagem que tinha feito pelo Sertão, e dizia que as pedras e lajedos do nosso sagrado Cariri encontram-se, às vezes, em aglomerados que parecem Fortalezas ou Castelos arruinados. A partir daí, toda vez que me lembrava dos dois rochedos gêmeos da Pedra do Reino, era como se eles fossem, além da Catedral Soterranha que os Reis, meu antepassados, tinham revelado, a Fortaleza e o Castelo onde se fundamenta nosso sangue".
Fala de Dom João Ferreira Quaderna, o Rei da Pedra Bonita, em: Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna
Figurante de auto popular no ciclo do reisado (1970), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Figurantes de auto popular no ciclo do reisado com seu tradicional chapéu (1970), de Maureen BisilliatInstituto Moreira Salles
Data de 1960 seu primeiro contato com Jorge Amado, que lhe inspirou a ideia de realizar um trabalho de “equivalência fotográfica” sobre obras literárias nacionais. Poucos anos depois, ao percorrer o sertão de Minas Gerais em busca de imagens que dialogassem com Grande sertão: veredas, obra-prima de Guimarães Rosa, Maureen já tinha se naturalizado brasileira.
De 1964 a 1972, fotojornalista contratada da Editora Abril, realizou para revistas como Realidade e Quatro Rodas ensaios que ficaram célebres, entre eles “A batucada dos bambas”, sobre o samba tradicional carioca, e “Caranguejeiras”, retratando mulheres catadoras de caranguejos na aldeia paraibana de Livramento.
Editora incansável de sua própria obra, Maureen lançou ainda dois volumes notáveis sobre o Parque Nacional do Xingu, ambos chamados Xingu, com os subtítulos Detalhes de uma cultura (1978) e Território tribal (1979). Também sobre a região, que visitou diversas vezes, codirigiu com Lúcio Kodato o documentário de longa-metragem Xingu/terra. A paixão pelo vídeo passou a absorvê-la cada vez mais a partir dos anos 1980, mas, nos anos 1990, Maureen ainda publicou livros com ensaios fotográficos de viagens à África, ao Líbano e ao Japão.
Em 1988, com Jacques Bisilliat, seu marido, e Antônio Marcos da Silva, foi convidada por Darcy Ribeiro para montar o acervo de arte popular latino-americana, origem do Pavilhão da Criatividade da Fundação Memorial da América Latina. Foi curadora do espaço de sua criação até 2011.
Em 2009, o IMS lançou a exposição e o livro Maureen Bisilliat-Fotografias, uma visão panorâmica de sua carreira, com participação da própria Maureen na curadoria.
Além de Amado, Guimarães, Euclides da Cunha e Suassuna, travou diálogos fotográficos com Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Adélia Prado e Mário de Andrade, este a inspiração para o ensaio que expôs numa sala especial da XVIII Bienal de São Paulo, em 1985, baseado no livro "O turista aprendiz".
Os três ensaios contidos nesta exposição virtual foram criados a partir da exposição retrospectiva de Maureen Bisilliat e seu catálogo, ambos produzidos pelo Instituto Moreira Salles.
Curadoria: Maureen Bisilliat e Sergio Burgi
Maureen Bisilliat - imagens da literatura brasileira
Edição: Rachel Rezende
A obra completa de Maureen Bisiilat compreende 16.251 imagens, entre fotografias, negativos preto-e-branco e cromos, e é parte do acervo fotográfico do Instituto Moreira Salles.
Agradecimentos: Thaiane N. Koppe