Os Painéis de São Vicente

Descubra as 60 figuras pintadas por Nuno Gonçalves

Painéis de São Vicente (Século XV) de Nuno GonçalvesMNAA Museu Nacional de Arte Antiga

Redescobertos em 1883 no Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa, só depois do seu restauro, em 1910, os painéis foram mostrados ao público.

Nessa altura, José de Figueiredo – que viria a ser o primeiro diretor do Museu Nacional de Arte Antiga – identificou a figura central das duas tábuas maiores como São Vicente e relacionou as pinturas com o antigo retábulo da Capela de São Vicente da Sé de Lisboa, pintado cerca de 1470 por Nuno Gonçalves, pintor e cavaleiro da Casa Real de D. Afonso V.

Os seis painéis são ainda hoje nomeados segundo as designações propostas por José de Figueiredo, da esquerda para a direita:

Painel dos Frades (207.2 cm x 64.2 cm),
Painel dos Pescadores (207 cm x 60 cm),
Painel do Infante (206.4 cm x 128 cm),
Painel do Arcebispo (206 cm x 128.3 cm),
Painel dos Cavaleiros (206.6 cm x 60.4 cm),
Painel da Relíquia (206.5 cm x 63.1 cm).

Esta monumental assembleia – um grupo de 58 figuras, em torno da dupla figuração de São Vicente – é entendida como uma representação da corte portuguesa e de vários grupos sociais do século XV, evocando alguns importantes triunfos da expansão no Norte de África da Dinastia de Avis (segunda dinastia dos reis de Portugal, 1385-1580).

Apesar de a obra continuar a dar azo a discussões entre os especialistas, praticamente sobre todas as questões envolvidas no seu estudo, é reconhecida como um dos mais imponentes e singulares retratos colectivos do Renascimento europeu.

Nos dois painéis colocados à esquerda no políptico estão representados frades e monges de diversas ordens religiosas. Tem-se discutido se os monges de branco seriam Cistercienses, ordem de enorme importância nacional, ou Agostinhos, ligados ao culto vicentino pela invocação do mosteiro lisboeta de São Vicente de Fora.

Dois deles, estranhamente, têm barretes civis e um tem longas barbas (nos Painéis, só duas figuras de religiosos e um cavaleiro apresentam barba). Neste caso, poderá tratar-se de um barbati, frade que havia prestado o voto de obediência mas não vivia em clausura nem usava escapulário.

Uma das mais fortes representações humanas dos Painéis é certamente este franciscano idoso, calvo e de longas barbas brancas, prostrado de joelhos e cotovelos no chão, de mãos postas, envoltas por um rosário.

As práticas individuais de devoção cresceram no final da Idade Média e, por vezes, assumiam fórmulas de intensa mortificação. O rosário − repetição de 150 Ave-marias entrecortadas por Padres-nossos num recitativo de meditação sobre os Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos da Vida da Virgem − era rezado de joelhos, como o frade e a dama do painel central o fazem.

A figura central, São Vicente, surge nos dois quadros maiores. Essa figura repetida veste uma dalmática, o que indica tratar-se de um diácono.

Dos três santos diáconos mais importantes – São Lourenço, Santo Estêvão e São Vicente – apenas o último se encontra profundamente ligado à história de Portugal e a Lisboa: o resgate das suas relíquias, trazidas do Promontório Sacro (Sagres) para Lisboa, foi um feito notável de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. O Santo passou a ser padroeiro da capital portuguesa e venerado na catedral da cidade.

No século XV, tornou-se também patrono das conquistas ultramarinas e o altar da capela onde estava o seu túmulo foi renovado cerca de 1470, pelo que é provável que os painéis tenham sido realizados para esse altar.

A figura do homem idoso, com um chapéu ao modo borgonhês, foi a primeira a ser identificada nos painéis pelo historiador e crítico de arte Joaquim de Vasconcelos, em 1895.

Tal foi possível devido às semelhanças entre este rosto e o retrato de D. Henrique, o Navegador, filho de D. João I, que se encontra na Crónica da Conquista da Guiné de Gomes Eanes de Azurara, manuscrito do século XV, actualmente na Biblioteca Nacional de Paris.

A identificação desta figura contribuiu para a compreensão do políptico como uma homenagem ao padroeiro de Lisboa por parte da família real portuguesa.

O arcebispo é um retrato de grande dignidade, revelando a capacidade do pintor Nuno Gonçalves em representar a figura humana e as ricas vestes, alfaias e jóias.

A participação do arcebispo nesta cerimónia, acompanhado por alguns cónegos, é mais um dado para a identificação da figura principal como São Vicente, padroeiro de Lisboa. A sua identificação concreta pode variar segundo a data atribuída à pintura. Se for anterior a 1464, o arcebispo poderá ser D. Álvaro Nogueira, figura muito próxima do rei D. Afonso V, da Ordem dos Lóios. Se a pintura for posterior a esta data, poderá tratar-se do cardeal D. Jorge da Costa, influente personagem da política portuguesa e da corte papal.

Segundo uma descrição do século XVII, as armas de D. Jorge da Costa ornavam o retábulo.

Na Capela de São Vicente da Sé Catedral de Lisboa, o retábulo deveria rodear o túmulo onde se encontravam as relíquias do santo.

Neste painel, a figura em primeiro plano é um homem vestido de vermelho, cor que era própria dos vereadores da cidade.

O osso que mostra explicitamente sobre um pano verde é um fragmento de um crânio, provável representação de uma relíquia corporal de São Vicente, na mesma composição onde surge o seu ataúde.

Alguns autores identificaram este pormenor da pintura como a relíquia de Santo António de Lisboa ou de Pádua, oferecida em 1428 pela Signoria de Veneza ao Infante D. Pedro, irmão do rei, D. Duarte, e de D. Henrique.

Mas, como sucede com muitos outros aspectos dos painéis, a dúvida persiste: porquê a apresentação de um osso de Santo António numa veneração a São Vicente?

No painel em que uma figura mostra uma relíquia, outra exibe um grande livro, com estranhos caracteres. Para alguns especialistas, poderá tratar-se de uma crónica moçárabe da vida de São Vicente, para outros, de um texto hebraico.

A última hipótese costuma ser justificada pela presença, na roupa desta figura, de uma possível estrela de seis pontas, que as Ordenações Afonsinas tornaram obrigatória no vestuário dos judeus quando estes se apresentavam ao público. Esta marca não possui, no entanto, o desenho tradicional da Estrela de David, não sendo também comum a presença de um judeu na veneração de um santo cristão. Poderia tratar-se de alguém muito importante, um rabi, por exemplo, mas, nesse caso, teria de ser representado com o essencial atributo das barbas. Após vários estudos inconclusivos, aponta-se a hipótese de tratar-se do simulacro de uma escrita não-latina. O livro e o seu portador permanecem, assim, um mistério.

Créditos: história

Textos: MNAA/Joaquim Oliveira Caetano

Créditos: todos os meios
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