O que nos une...
Nos portos brasileiros, no final do século XIX, desembarcava gente de todo o tipo: jovens de famílias abastadas que voltavam dos estudos na Europa, as primeiras levas de trabalhadores imigrantes, engenheiros e construtores das estradas de ferro que abriam o interior do país, marinheiros vindos de todo o mundo. O que, entre migrantes com perfis sociais tão variados, poderia ser comum?
Damas com travesseiros nas mãos (1917), de Museu da Imagem e do Som / RJMuseu do Futebol
Estação Vila Mariana em Santo Amaro (1900), de Fundação Energia e Saneamento SPMuseu do Futebol
... é a bola.
A resposta está em um objeto esférico, feito de borracha e couro e jogado com os pés.
Operários na fabricação de ferraduras (1910), de Iconographia / Cia da MemóriaMuseu do Futebol
Com a bola, veio o futebol, ou melhor, football.
De origem britânica, esse esporte rapidamente se espalhou pelo mundo, de porto em porto, de ferrovia em ferrovia, de colégio em colégio. No Brasil, ele foi introduzido e apropriado por diferentes camadas sociais: dos ricos estudantes a trabalhadores urbanos das fábricas de São Paulo e Rio de Janeiro.
Mas não sem ser marcado pelo abismo social da época.
Charles Miller,
estudante paulista e descendente de ingleses, é um personagem de destaque nessa história. Em novembro de 1894, depois de estudar durante dez anos em Southampton, trouxe da Inglaterra a bola e o livro de regras da Football Association, que fora instituído em 1863. Alguns meses depois, em abril de 1895, ele ajudou a organizar uma partida entre os times das empresas São Paulo Railway e São Paulo Gaz Company, numa região da capital paulista chamada Várzea do Carmo.
Esquina da Rua Líbero Badaró (1900), de Iconographia / Cia da MemóriaMuseu do Futebol
Os pátios das fábricas, as várzeas dos rios, as ruas recém-pavimentadas, os terrenos baldios, tudo era campo de futebol. E este nem sempre foi como conhecemos hoje.
Quer saber como eram as linhas e marcações de um campo de futebol, desde a definição das regras na Inglaterra, em 1863 até 1902?
Clubes e Associações Atléticas
Na passagem do século XIX para o XX, as atividades esportivas mais praticadas nos centros urbanos eram o remo, o críquete, a corrida de cavalos, o turfe e o ciclismo. Assim, os primeiros clubes dedicavam-se a essas práticas, como o São Paulo Athletic Club, clube fundado em 1888. Este clube formou, em 1894, um dos primeiros times de futebol, liderado por Charles Miller. Em 1898 veio o time da Associação Atlética Mackenzie College.
Clubes de elite
Nas primeiras décadas do século XX, o futebol no Brasil era uma prática amadora, destinada ao tempo-livre de estudantes que podiam exibir as modas civilizadas que aportavam da Europa. Jogar futebol nos clubes era uma prática para jovens ricos, feita apenas por divertimento e lazer.
Sócios do Club Sportivo de Equitação (1910), de Museu da Imagem e do Som / RJMuseu do Futebol
O ambiente dos clubes revelava os costumes da elite e assistir a partidas esportivas, seja do futebol, do tênis, críquete ou outra atividade, era um evento voltado para a alta sociedade.
Casamentos e negócios eram tramados nos eventos esportivos.
Torcedores no Estádio das Laranjeiras (1920), de Acervo Fluminense Futebol ClubeMuseu do Futebol
O espaço era socialmente controlado, longe dos eventos de massa que tomariam a cena a partir das décadas seguintes.
A vestimenta desses primeiros torcedores era marcada pela elegância distintiva: chapéus, ternos, vestidos alinhados... e um lenço, adereço de fundamental importância para saudar os atletas.
Com o futebol praticado em clubes, nasce o torcedor.
Dizem que a expressão “torcer”, indicando a simpatia por uma equipe, veio da prática comum, nas arquibancadas do início do século, de torcer o lenço. Seja para secar o suor da pele nas tardes ensolaradas, seja para balançá-lo durante a vibração pelo time, o lenço era marca registrada das arquibancadas no início do século passado.
Chuteiras (1900/1927), de Museu do FutebolMuseu do Futebol
O primeiro clube destinado exclusivamente ao futebol foi o paulista Sport Club Internacional, fundado em 1899 e já extinto.
Logo depois, no mesmo ano, foi fundado o Sport Club Germânia pelo alemão Hans Nobiling, hoje com o nome de Esporte Clube Pinheiros.
Como o Pinheiros não pratica mais o futebol, considera-se, atualmente, o Sport Club Rio Grande (RS), fundado em 1900, o clube de futebol mais antigo e ainda em atividade no Brasil. É conhecido como “vovô”.
Na primeira década do século XX, a organização de campeonatos de futebol ensaiava seus primeiros passos.
Charles Miller entre os companheiros do S.P.A.C. (1894/1900), de Centro Britânico SPMuseu do Futebol
Em 1902 é disputado o primeiro Campeonato Paulista – o primeiro campeonato oficial do país – com apenas cinco times, todos da capital: Associação Athletica Mackenzie College, Sport Club Germânia, Club Athletico Paulistano, o Sport Club Internacional e o São Paulo Athletic Club, que levou o primeiro título.
Time do Fluminense (1910), de Iconographia / Cia da MemóriaMuseu do Futebol
No Rio de Janeiro ocorreu um processo semelhante, com destaque para o Fluminense Football Club, fundado em 1902.
Na sequência, em 1904, surgiram o Botafogo Football Club (atual Botafogo de Futebol e Regatas), o Bangu Athletic Club e o América Football Club. O primeiro campeonato carioca, vencido pelo Fluminense, ocorreu em 1906.
Dirigentes e sócios do Vasco (1920/1929), de Acervo Clube de Regatas Vasco da GamaMuseu do Futebol
Clubes de Operários
A maioria dos clubes de elite proibia a participação de negros e mestiços das agremiações. Mas esses, majoritariamente trabalhadores operários, também praticavam o futebol em suas horas de lazer, nos intervalos dos turnos das fábricas ou nos campos dos subúrbios, formando suas próprias agremiações.
Equipe do Fluminense (1916), de Agência O GloboMuseu do Futebol
Nos anos 1920, o futebol se populariza e conquista de vez as massas.
Em 1919, o Brasil sedia e vence o III Campeonato Sul-Americano.
O Estádio das Laranjeiras, do Fluminense, é construído para receber vinte mil espectadores para esse evento de porte internacional.
É a primeira vez que se constitui uma seleção nacional de futebol e que se torce pela nação brasileira.
Com essa popularização do futebol, fica cada vez mais difícil para os clubes manter a barreira social contra negros, operários e analfabetos.
O Vasco da Gama e o Bangu, no Rio de Janeiro, já apresentavam, nos anos 1920, jogadores que também eram trabalhadores em suas equipes.
Dirigentes e jogadores do Botafogo (1910), de Acervo Botafogo de Futebol e RegatasMuseu do Futebol
Com a proliferação de clubes e a popularização dos campeonatos, fica também difícil sustentar o amadorismo excludente.
Jogadores vindo das camadas mais pobres viam no futebol uma possibilidade de ganho extra e passavam a receber dinheiro para atuar nos clubes.
Os clubes de subúrbio, no Rio de Janeiro, como o Vasco da Gama, pressionavam pelo fim da política amadorista da federação de futebol... Mas os clubes de elite resistiam ao máximo contra os novos tempos.
Equipe do Palestra Italia F. C., atual S.E. Palmeiras, campeã invicta paulista de 1926. De touca branca, o jogador Bianco Gambini, autor do primeiro gol da história da equipe.
Treino do América F.C. no bairro do Andaraí, Rio de Janeiro, 1915.
El Tigre, o primeiro craque
O primeiro jogador do país a ser chamado de “craque” foi Arthur Friedenreich. Neto de alemães, mulato, filho de uma professora com um funcionário da Secretaria de Viação e Obras Públicas. Foi o protagonista da campanha do título brasileiro no Sul-Americano de 1919. Artilheiro da competição, o atacante recebeu o apelido de “El Tigre” dos jornalistas uruguaios.
Profissionalização
A entrada do futebol no campo do esporte profissional ocorreu em 1933, quando o então presidente Getúlio Vargas regulamenta as diretrizes do esporte nacional e permite a prática profissional de jogadores. Iniciou-se, com isso, uma nova era no futebol brasileiro, que já tinha conquistado as massas urbanas, habitantes das grandes cidades. Nas décadas de 1930 e 1940, coube ao rádio um papel fundamental para difundir os principais clubes em todo o Brasil, criar novos ídolos esportivos, formar campeonatos e projetar a seleção nacional. O que viria pela frente é uma história cheia de vitórias e conquistas!
Seleção brasileira em 1934 (1934), de Acervo Iconographia Cia da Memória Direitos ReservadosMuseu do Futebol
O amor ao futebol como disputa apaixonada faz com que se perca de vista o seu papel transformador. Mas o fato é que o futebol tem sido uma ponte efetiva (e afetiva) entre a elite que foi buscá-lo no maior império colonial do planeta, a civilizadíssima Inglaterra, e o povo de um Brasil que, naqueles mil oitocentos e tanto, era constituído de ex-escravos. Juntar brancos e negros, elite senhorial e povo humilde foi sua primeira lição. O futebol demonstrou que o desempenho é superior ao nome de família e a cor da pele. Ele foi o primeiro instrumento de comunicação verdadeiramente universal e moderno entre todos os segmentos da sociedade brasileira. Ele tem ensinado a agregar e desagregar o Brasil por meio de múltiplas escolhas e cidadanias.
- Roberto DaMatta, Antropólogo
Imagem da Sala Origens (2012), de Luciano Mattos BogadoMuseu do Futebol
Essa exposição baseia-se na Sala das Origens da Exposição de Longa Duração do Museu do Futebol.
Os vídeos aqui exibidos fazem parte do vídeo Origens, produzido pelo estúdio Preto e Branco, com direção de Luiz De Franco Neto, montagem de Orlando Malacarne Neto, narração de Milton Gonçalves, trilha sonora de Naná Vasconcelos e texto de Leonel Kaz.
Exposição O Jogo e o Povo
Versão original - 2013
Curadoria | Equipe de Conteúdo do Museu do Futebol
Coordenação | Pedro Sant'Anna
Textos | Daniela Alfonsi, Lucas Donato e Felipe Santos
Diagramação | Pedro Sant'Anna e Lucas Donato
Edição de Vídeo e imagem | Bruna Gottardo e Hugo Takeyama
Versão revisada - 2018
Coordenação | Camila Aderaldo
Adaptação, edição google e tradução | Ana Letícia de Fiori