Coleção Egípcia (2019)Museu Nacional de Arqueologia
Onde tudo começou
Para a humanidade o Antigo Egipto será sempre uma herança extraordinária, como um dos principais lugares de nascimento da nossa cultura coletiva.
As vidas passadas do seu povo, através das múmias, impulsionam a nossa imaginação e são um especial atrativo para aprender mais sobre essas pessoas e a sua cultura.
No ambiente, suavemente iluminado, das salas Egípcias do MNA existem múmias com descobertas únicas, que fascinam cada novo visitante.
Pabasa a chegar ao laboratório (2010) e artigo de Álvaro Figueiredo de 2003 (2010)Museu Nacional de Arqueologia
Esta história tem duas origens distintas
Uma, um desafio feito ao MNA, por um grupo de radiologistas apaixonados pela arqueologia e arte, para possibilitar a investigação por radiografia e TAC das múmias (7 animais e 3 seres humanas), nunca antes feito.
A outra, e desconhecida pelos radiologistas, um artigo do bio-arqueólogo Álvaro Figueiredo, publicado em 2003, defendendo a necessidade de tal estudo e batizando-o como Lisbon Mummy Project (LMP). A combinação das duas origens, enriquecida por muitos outros especialistas, constitui um verdadeiro trabalho coletivo, iniciado em 2007 e que ainda continua…
Sarcófago de Pabasa na TAC (2010/2010)Museu Nacional de Arqueologia
Paleorradiologia
A investigação pela TAC, não-invasiva e não-destrutiva, de artefatos antigos, e especialmente restos humanos, significa muito mais do que identificar sexo, idade, uma possível causa de morte ou descobertas isoladas.
Procura conhecer as suas relações com o meio ambiente, as suas vidas, sofrimentos e doenças, respeitando a ética, a sensibilidade da comunidade, e sempre honrando essas pessoas milenares.
O objetivo final é melhorar nosso conhecimento dos contextos do Egipto Antigo, sejam eles culturais, antropológicos ou médicos, ajudando-nos também a melhor moldar o nosso futuro.
TAC-R3D do busto de Irtieru (-1070/-684)Museu Nacional de Arqueologia
Esta história
Esta história revela primeiramente achados em 4 das múmias animais, bem como hipóteses sobre os seus significados. Descrevem-se a seguir as principais descobertas paleopatológicas nas três múmias humanas, algumas não descritas, e que afetaram as suas vidas passadas. Conclui-se com duas notas, uma que visa melhorar resultados futuros, outra expandir este modelo de colaborações.
Vaso de terracota de uma múmia animal (-399/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Um vaso selado
O que está lá dentro?
TAC-R3D do vaso de terracota, pós-processamento e vista interna (-399/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Este vaso cerâmico, provavelmente Ptolemaico, está selado e preservado desde a sua criação há mais de 2.000 anos.
A TAC, de modo não-invasivo, obteve informações volumétricas que, com pós-processamento 3D, possibilitou a sua abertura virtual, revelando pela primeira vez o seu conteúdo.
TAC-RMP (axial e sagital) do vaso de terracota (-399/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Dentro observou-se uma mistura de materiais e detritos, com ossos reconhecíveis, fragmentos de linho, seixos do Nilo e, provavelmente, lama ou serradura.
Um dos ossos é um osso de quilha de pássaro e, usando anatomia comparada, identificou-se o seu proprietário original – o vaso contém o peito e uma asa de um Threskiornis aethiopicus.
Trata-se de um íbis sagrado, representando o deus Egípcio Thoth, criador da Terra, dos céus e estrelas, autor de obras de ciência, religião, filosofia e magia. O íbis corresponde também ao animal habitualmente colocado dentro deste tipo de recipiente votivo.
Múmia de um Falcão (-699/-1)Museu Nacional de Arqueologia
Uma Múmia de Pássaro
Será que se trata de uma múmia eviscerada.
TAC-RMP (sagital) das penas da asa e cabeça do falcão (-699/-1)Museu Nacional de Arqueologia
Pensava-se que esta múmia do período Tardio, seria de pássaro, um falcão, devido à sua configuração externa. O estudo da TAC confirmou-o, evidenciando um muito bem preservado falcão (Falco peregrinus), com o elegante contorno da sua cabeça e as penas duma asa perfeitamente visíveis, num processo de mumificação de alta qualidade.
O falcão é venerado desde os tempos mais remotos e aparece associado ao deus Hórus, filho de Ísis e Osíris, e é ainda associado ao poder faraónico. Muitas vezes o faraó surge protegido por um falcão.
TAC-R3D e RMP (sagital) da múmia de falcão (-699/-1)Museu Nacional de Arqueologia
A sua cavidade toracoabdominal está vazia, exceto pela presença de uma estrutura oval posterior, próxima ao que parece ser parte do diafragma, estruturalmente sugerindo um agregado visceral, possivelmente a moela, o fígado ou o coração.
Este padrão, provavelmente acidental, parece espelhar uma típica evisceração humana, deixando cuidadosamente o coração no seu lugar.
Múmia de um Ibis (2007)Museu Nacional de Arqueologia
Múmia de Ibis
- uma vertebra em falta
Raio-X de perfil do Ibis (2007/2007)Museu Nacional de Arqueologia
O segundo íbis da coleção está anatomicamente completo, repousando na sua mais habitual posição de mumificação.
TAC-RMP (coronal e sagital) do Ibis (2007/2007)Museu Nacional de Arqueologia
A análise da TAC mostrou uma ave aparentemente eviscerada, mas com a falta de uma vértebra lombar, com o seu espaço preservado e, lateralmente, as costelas correspondentes.
Este achado invulgar pode admitir alguma especulação sobre eventual via de abordagem para evisceração.
Múmia de um Crocodilo (2019)Museu Nacional de Arqueologia
Múmia de Crocodilo Juvenil
Como matar um crocodilo.
3D CT da Cabeça de Crocodilo (-1200/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Sobek, deus crocodilo do Egito Antigo, era o deus da raiva e da guerra. É associado à morte, enterros, violência e sexualidade. O estudo por TAC desta múmia desenfaixada revelou descobertas curiosas no seu pescoço e cabeça: uma clara desarticulação das duas primeiras vértebras cervicais e também uma fratura do ramo maxilar direito.
TAC 3D do Crânio do Crocodilo (-1200/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Em múmias de crocodilo adultos, maiores, há mortes descritas através de forte golpe na cabeça, causando fratura no crânio.
Neste caso, juvenil, os achados levantam a hipótese de um mecanismo de morte diferente, possivelmente usado em animais menores. Teria resultado de um trauma cervical, através de um estilete cravado e manobrado de modo a deslocar as primeiras vértebras. A fratura da mandíbula poderia ser consequência da forte pressão de fixação da cabeça de um animal em luta.
Cartonagem da múmia de Irtieru (-1070/-684)Museu Nacional de Arqueologia
Irtieru
Terceiro Período Intermediário, 1.070-664 a.C. (2.800 anos), homem, 35 a 45 anos, 1,71 m ± 4 cm
TAC-R3D do corpo de Irtieru (-1070/-684)Museu Nacional de Arqueologia
Irtieru era um homem, alto para o seu tempo. Esta imagem TAC-3D de alta resolução, obtida de modo não invasivo, recorta parte de sua cartonagem exterior, e faixas de linho, revelando de forma impressionante o seu corpo, muito bem preservado pelo revestimento de resina.
TAC-RMP (sagitais) da coluna de Irtieru (-1070/-684)Museu Nacional de Arqueologia
Irtieru, apesar de ser relativamente novo, provavelmente sofreria de dores na coluna e ancas.
A TAC da coluna vertebral mostrou um padrão irregular em vários planaltos vertebrais, deformação em cunha anterior e aparente perda de espaço dos disco.
Estas alterações são sugestivas de doença de Scheuermann, e associada a dor nas costas. O seu corpo, há muito mumificado e deitado de costas, impede uma correta avaliação de uma postura cifótica, habitual durante a vida.
TAC-vista axial das ancas de Irtieru (-1070/-684)Museu Nacional de Arqueologia
A TAC das suas ancas revelou, entre as cabeça e colo dos fémures, deformações ósseas congénitas.
São protuberâncias focais do osso (setas amarelas) e correspondem ao denominado conflito femuroacetabular (CFA), causando trauma acetabular crônico na cartilagem, labrum e osso. Existem ainda pequenos quistos degenerativos nessas zonas das cabeças femorais e que ilustram já uma artrite precoce.
Assim Irtieru, também terá sofrido dores e limitações em alguns movimentos das ancas.
TAC-RMP (coronal e axial) da região lombar esquerda de Irtieru (-1070/-684)Museu Nacional de Arqueologia
A TAC abdominal de Irtieru revelou outro achado único. Numa localização lombar posterior esquerda, identificou-se uma pequena estrutura calcificada, em forma de feijão, situada onde deveria estar o rim (vista coronal acima, vista axial abaixo).
Esta localização, a forma, e sua estrutura orgânica são típicas de uma fase final de atrofia e calcificação por tuberculose renal (1).
Foi precisamente esta transformação cálcica que possibilitou a quase trimilenar sobrevivência deste rim. Significa ainda que Irtieru tinha previamente tido uma forma pulmonar de tuberculose, e à qual sobreviveu.
Sarcófago de Pabasa (-663/-323)Museu Nacional de Arqueologia
Pabasa
663-323 BC
Homem 40 a 50 anos. 1.62 m ± 4 cm
Meet Pabasa (-663/-323)Museu Nacional de Arqueologia
Vemos aqui o sacerdote Pabasa, dedicado ao deus Min e com a tarefa de vestir a sua estátua. A sua cabeça e face mostram práticas da mumificação, como a tentativa proteção do seu couro cabeludo da resina, através de faixas de linho. Observamos ainda os olhos artificiais aplicados.
TAC-R3D do crânio de Pabasa, pós-processamento em vista interna (-663/-323)Museu Nacional de Arqueologia
Pabasa, no seu processo de mumificação, teve uma normal extração do cérebro, vertendo-se depois dentro do crânio uma significativa quantidade de resina aquecida, para evitar degradação ulterior. No entanto, como mostra esta imagem de TAC-3D, o interior do crânio estava quase vazio de resina devido ao seu extravasar, inferiormente, pelo canal medular da sua coluna vertebral.
TAC-RMP (sagital) da coluna de Pabasa e (coronal oblíqua) do seu sacro (-663/-323)Museu Nacional de Arqueologia
Como resultado, Pabasa representará o mais antigo exame tipo "mielográfico" conhecido, ainda que post-mortem. A mielografia, descrita pela primeira vez em 1921, envolvia a injeção de um meio de contraste no canal medular e foi usada por muitos anos em radiologia.
Surpreendentemente, esta primeira mielografia de "resina" revelou um diagnóstico: um quisto na bainha de um nervo sagrado esquerdo, ou quisto de Tarlov (setas amarelas), desaparecido há muito, mas reconhecível pela sua moldagem na resina da bainha do nervo.
TAC-RMP oblíquas do tornozelo esquerdo de Pabasa (com linhas de referência) (-663/-323)Museu Nacional de Arqueologia
Pabasa, pelo menos nos seus últimos anos de vida, teve vida difícil devido a dor e inchaço no seu tornozelo esquerdo, e sem dúvida coxeava.
O seu infortúnio ocorreu algum tempo antes, quando sofreu uma entorse grave dessa articulação. A gravidade da torção danificou a cartilagem e osso cortical da cúpula do astragalo. Associou um derrame articular que progressivamente penetrou na estrutura do astragalo, causando um típico padrão plurilocular e esclerótico, evidenciado aqui em três planos quase ortogonais (linhas brancas).
Múmia enfaixada de Sukhetsahor (-250/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Sukhetsahor
Período Ptolemaico Inicial, Akmin 250-200 a.C. (2.200 anos), homem, 51 a 60 anos, 1.66 m +/- 4 cm
TAC-R3D da cabeça de Sukhetsahor (-250/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Vemos aqui as feições de Sukhetsahor, um Antigo Egípcio que atingiu uma idade rara pelos padrões da época.
Como viveu mais, também incorreu maior risco de patologias mais tardias, e uma delas mudou sua vida, sendo uma possível causa de morte.
Mas também poderá tê-lo ajudado a alcançar um muito venerado desejo dos Antigos Egípcios: de certa forma, um renascimento, embora de maneira muito peculiar.
TAC-vista axial das pernas e coxas de Sukhetsahor (-250/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Sukhetsahor exibe um raro grau de preservação muscular, como pode ser observado nestas imagens axiais de TAC das pernas (anteriormente) e coxas (posteriormente). Entre as coxas, o seu pénis mumificado.
TAC-RMP oblíquas de músculos do braço, bacia e perna de Sukhetsahor (-250/-200)Museu Nacional de Arqueologia
Essa boa preservação permitiu uma avaliação mais precisa dos seus músculos.
Em planos multiplanares oblíquos de TAC identificámos múltiplas pequenas imagens ovais hipodensas, assinaladas aqui (setas amarelas) em vários dos seus músculos. É um padrão muito sugestivo de uma doença parasitária, conhecida no Egipto Antigo, a Triquinelose, causada pela ingestão de carne de porco contaminada e mal cozinhada.
É muito provável que Sukhetsahor tenha sido antigido, sendo neste caso a mais antiga forma muscular diagnosticada de modo não invasivo e numa múmia.
TAC dos osso pélvicos de Suckhetsahor (-250/-200)Museu Nacional de Arqueologia
O exame de TAC de Sukhetsahor revelou ainda outro achado raro, desta vez nos seus ossos.
Várias focos escleróticos e densos (manchas brancas, setas amarelas) nos ossos da bacia, vértebras lombares e outras, menos perceptíveis nos fémures, úmeros e costelas.
Num homem da sua idade, este tipo de lesões, e com esta distribuição específica, são praticamente diagnósticos de doença metastática de carcinoma da próstata.
Sukhetsahor é o segundo caso mais antigo conhecido desta doença e o primeiro numa múmia egípcia (2).
Lisbon Mummy Project, equipa e trabalho (2007/2019)Museu Nacional de Arqueologia
As descobertas do LMP foram notáveis e têm uma receita de trabalho muito simples: Equipa e Tempo.
Equipe retrata o trabalho muito próximo dos radiologistas com um grupo multidisciplinar (egiptólogos, arqueólogos, historiadores, curadores, conservadores), crucial para os resultados.
O tempo, muito tempo, foi essencialmente dedicado à observação e análise das milhares de imagens de TAC.
Esta dupla fórmula será provavelmente o principal fim da partilha desta estória. Neste espírito, reavaliações de TACs de múmias já antes estudadas seriam, muito provavelmente, recompensadoras.
Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa / parceiros LMP (2007/2007)Museu Nacional de Arqueologia
Os custos de exposição e gestão de artefatos e coleções culturais públicas e privadas são complexos e bem conhecidos.
A interminável crise financeira enfrentada pelos governos tende sempre a afetar mais áreas culturais e do património. Consequentemente, verificam-se mudanças lentas, mas consistentes, de financiamentos governamentais para esferas filantrópicas.
Esta história, de enriquecimento de uma coleção pública através de trabalhos de investigação e apoios externos, reflete esses novos tempos. E aspira a encorajar muito mais organizações a trilharem estes caminhos essenciais.
O LMP beneficiou do trabalho de muitos profissionais, num percurso coletivo e inspirador que nunca será esquecido. Estamos especialmente gratos a:
Luis Raposo - Diretor do MNA 1996-2012
Salima Ikram, Luis Manuel Araujo – Egiptologistas
Carlos Prates, Sandra Sousa, Carlos Oliveira – radiologistas
Fernando Cardoso, Rita Vidigal, and many others – técnicos de radiologia
Mathias Tissot, Maria José Albuquerque – curadores/conservadores
João Seabra, Luisa Silva, Mário Soares – Siemens
Álvaro Figueiredo – bioarqueólogo (1966-2019†)
Créditos: História
Referem-se as seguintes pessoas e organizações, desde o desafio de a criar, até à sua concepção, coordenação e apoio técnico.
António Carvalho (Diretor MNA)
Maria Filomena Barata (MNA/ DGPC)
Luis Ramos Pinto (DGPC)
Inês Ferreira (IMI-art/Affidea)
Carlos Prates (IMI-art/Affidea)
Museu Nacional de Arqueologia, MNA / DGPC Lisboa
Direção Geral do Património Cultural, DGPC / Portugal
IMI-art / Affidea, Portugal
Museu Nacional de Arqueologia, MNA / Lisboa (fotos das múmias)
IMI-art / Affidea, Portugal (todas as imagens radiográficas)