O futebol é uma linguagem universal e nele estão representados os mais diversos corpos, gêneros, raças e idades. Suas formulações e usos estão em constante disputa. Talvez aí more a beleza do esporte que consagrou o Brasil como "o país do futebol": sua pluralidade.
Ressignificando a frase, trazemos Barvarah Pah, musa do BeesCats: "O futebol é para o mano, para a mona, para a mina. É para todo mundo!".
O BeesCats foi um dos 21 times com representante entrevistado para o projeto de mapeamento e referenciamento "Diversidade em Campo: Futebol LGBTQIAP+", desenvolvido pelo Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol. Entre 2020 e 2022, foram levantados mais de 80 times que jogam futsal ou futebol society, de todas as regiões do país.
Tom Waddell, criador do World Gay Games. (2022-05-25), de Ligia DonaMuseu do Futebol
Uma pauta internacional: Gay Games
Em 2018, na França, o BeesCats foi a primeira equipe de futebol de 7 e a única representante da América do Sul no Gay Games. Tom Waddell, atleta estadunidense, foi o responsável pela criação do torneio, originalmente nomeado de Gay Olympic Games.
Medalhas de ouro, prata e bronze dos World Gay Games. (2018), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Logo em sua primeira edição, realizada em São Francisco, nos Estados Unidos (1982), o evento sofreu com uma ação judicial que proibia o uso do termo "olympic". Mas isso não tirou o brilho da celebração, que contou com show de abertura de Tina Turner e encerramento de Stephanie Mills.
Evento Ocupa Pacaembu, realizado na Praça Charles Miller. (2017-08-26), de CassimanoMuseu do Futebol
Além de estimular a competição e compartilhar a emoção de recordes e pódios, o Gay Games tem como objetivo propagar as ideias de tolerância e respeito. A edição de 1994, em Nova Iorque, coincidiu com o vigésimo quinto aniversário da Revolta de Stonewall, considerada um marco na luta pelos direitos LGBTQIAP+ nos EUA.
Time do Bulls, campeão da segunda edição da Champions LiGay. (2018-04-14), de Pedro JuniorMuseu do Futebol
Como se organizam?
Antes de o BeesCats ocupar um lugar de visibilidade internacional, um grande circuito foi preparado por vários times brasileiros. Sua fundação tem a mesma faísca: um grupo de conhecidos que querem jogar bola sem que a orientação sexual ou a identidade de gênero sejam um fator de exclusão.
Os grupos usam vários métodos de articulação, como redes sociais ou reuniões em bares. Há também histórias como a do Divas, time formado em um povoado de 107 famílias em Agricolândia (PI). Para conseguir os primeiros jogadores, Gean Carlos saiu em busca de amigos e conhecidos.
Time do Real Centro Comemora conquista de campeonato. (2020-06-29), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Quando tudo era mato... equipes pioneiras
Ao tentar elencar os precursores, chegamos em Real Centro e Magia. O primeiro foi fundado em 1990 por um grupo de amigos gays. Essa informação, no entanto, não era muito compartilhada: havia certo receio quanto à recepção dos times de maioria hétero contra os quais jogavam.
No Sul do país, em 2005, em uma dinâmica semelhante, foi fundado o Magia, considerado por alguns jogadores como "a primeira equipe assumidamente gay" do circuito.
Equipe do Meninos Bons de Bola durante o evento Ocupa Pacaembu. (2017-08-26), de Guto AbreuMuseu do Futebol
Uma década depois, em São Paulo, outro time se formava entre reuniões do Centro de Referência da Diversidade (CRD): o Meninos Bons de Bola. Primeira equipe de homens trans da qual se tem conhecimento no Brasil, o MBB comemorou seu primeiro aniversário no Festival Ocupa Pacaembu.
Equipe do T Mosqueteiros durante treino. (2022), de CassimanoMuseu do Futebol
Desde então, outros times trans se consolidaram, como o MandaBuscá, Pogonas, T Mosqueteiros, Trans United e BigTBoys. A relação ímpar de apoio e reconhecimento entre as equipes tem sido fundamental para discussão em torno da criação da primeira Liga Trans do circuito.
A consolidação de uma liga nacional
Com uma primeira edição realizada em novembro de 2017, a competição nacional foi organizada por integrantes de times que já compunham o circuito. A primeira de cinco edições foi também propulsora da criação da LiGay Nacional de Futebol. Com um total de 73 times mapeados ao logo de seus cinco anos de existência, a LiGay hoje reúne cerca de 38 times filiados.
Uma das maiores conquistas atuais foi a filiação do Trans United, que disputou a Etapa Sudeste, em 2022. A participação da equipe também abriu a discussão de uma possível chave só de times trans. Para Rodrigo Arcanjo, presidente do clube, a presença foi estratégica.
Atletas do Madalenas posam para fotografia. (2019), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Os times mapeados jogam também amistosos e competições organizadas por outras entidades. O Madalenas, por exemplo, enxerga o futebol como uma possibilidade de inclusão feminina. Dos campeonatos de que participaram, estão a Copa Lily Parr e o aniversário dos Meninos Bons de Bola.
Futebol como possibilidade de futuro
Fazer parte de um time, especialmente nesse caso, escapa dos limites das quatro linhas. Além da possibilidade de inserir uma prática esportiva na rotina, o futebol pode mudar vidas. Alguns dos entrevistados relataram ter passado por quadros de depressão e ansiedade em momentos distintos. Dante, goleiro do Trans United, relatou: "depois do esporte, de ter sido abraçado, eu consigo falar do futuro".
Para Alexandre Antoniazzi, do Natus, compor uma equipe e jogar bola representa "a possibilidade de ser um homem, com todas as características que eu tenho, pleno na sociedade".
Equipe do Bharbixas posa para foto durante a Champions LiGay. (2018-04-14), de Douglas BarcelosMuseu do Futebol
As Marquezines: a importância da torcida
O incentivo de familiares, amigos e companheiros é fundamental. A torcida do Bharbixas, majoritariamente composta pelos namorados dos atletas, por exemplo, é carinhosamente apelidada de "As Marquezines" - em referência à atriz Bruna Marquezine, ex-namorada do jogador Neymar.
Não existe distância quando o assunto é jogar
O Barcemonas, time de Ananindeua (PA), viaja todo o estado para disputar amistosos com outras equipes. O recorde foi de sete horas de estrada! Nessas ocasiões, um ônibus é locado para transportar jogadores e torcedores que querem assistir às partidas.
Jogadores do Karyocas posam para foto. (2019), de Direitos ReservadosMuseu do Futebol
Quer ajudar a aumentar esse mapeamento?
Você faz parte de alguma equipe LGBTQIAP+ e gostaria de compartilhar sua experiência e a história do seu time com o Museu do Futebol? Entre em contato pelo e-mail crfb@museudofutebol.org.br.
Mariana Chaves, Coordenadora de Exposições e Programação Cultural do Museu do Futebol. (2019), de Márcio GuerraMuseu do Futebol
Em memória à Mariana Chaves (1978-2022), Coordenadora do Núcleo de Exposições e Programação Cultural do Museu do Futebol. Parafraseando as Dibradoras, a Mari passou por esse plano como uma brisa leve, mas com a intensidade de uma grande onda. Mari, nós te amamos!
Museu do Futebol
São Paulo, junho de 2022.
Governo do Estado de São Paulo
Rodrigo Garcia - Governador
Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo
Sérgio Sá Leitão - Secretário
Cláudia Pedrozo - Secretária-Executiva
Frederico Mascarenhas - Chefe de Gabinete
Paula Paiva Ferreira - Coordenadora da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico
IDBrasil Cultura, Educação e Esporte - Organização Social de Cultura
Conselho de Administração
Carlos Antonio Luque - Presidente
Renata Vieira da Motta - Diretora Executiva
Vitoria Boldrin - Diretora Administrativa e Financeira
Marilia Bonas - Diretora Técnica
Exposição Diversidade em Campo: Futebol LGBTQIAP+
Curadoria e pesquisa: Dóris Régis e Ligia Dona
Textos: Ligia Dona
Metadados e montagem: Dóris Régis
Revisão: Dóris Régis, Fiorela Bugatti, Marcel Tonini e Renata Beltrão
Tradução: Marcel Tonini
Tratamento de imagens: Pablo Mazzucco
Referências Bibliográficas
BRASIL PARTICIPA DA PARIS GAY GAMES EM DEZ MODALIDADES. 31 jul. 2018. 1 vídeo (4:18 min). TV Brasil (YouTube).
CAMARGO, Wagner Xavier de. Esporte, cultura e política: a trajetória dos Gay Games nas práticas esportivas contemporâneas. Revista USP, São Paulo, n. 108, p. 97-114, jan.-mar. 2016.
CAMARGO, Wagner Xavier de. Gêneros em disputa: a LiGay Nacional de Futebol Society e o espaço de acontecimento. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, maio-ago. 2021.