Ao falecer, em agosto de 2018, Antonio Dias reunira uma coleção das próprias obras que recobria toda sua trajetória artística.O conjunto compunha-se tanto de peças de que ele nunca havia se separado, como de outras recompradas de terceiros para quem tinham sido vendidas. Tratava-se, pois, de uma representação de si mesmo intencionalmente construída, mantida e guardada. A atitude de colecionar-se manifesta um aspecto essencial do artista: Antonio Dias cultivou uma ética do trabalho que permite compreender seu percurso a partir de posicionamentos claramente formulados por ele. A dimensão ética de sua arte foi identificada desde cedo por comentadores de sua obra, tendo se tornado um tema recorrente em análises publicadas ao longo das últimas cinco décadas. Assim, a escolha dos componentes desta coleção testemunha atenção para com princípios que acompanharam o artista ao longo de sua vida e que deviam ser mantidos próximos a si. (Felipe Chaimovich - curador)
Você escapando, 1964
“Nos anos 1960 […], eu fazia uma estrutura material bastante simples: um quadrado, que era a própria superfície do quadro, dividido, por exemplo, em quatro outros quadrados. No interior deles, pintava, de maneira automática, uma imagem puxando a outra. Era uma livre associação do simbólico. O todo incrementado por fetiches meus e dos ‘outros’, caixinhas de madeira contendo sacos estofados cheios de costuras, tripas e corações, salsichas/pênis e punhos quebrados de estátuas de gesso, travesseiros manchados e caixas de acrílico cheias de algodão ou pregos.” Lúcia Carneiro e Ileana Pradella. Antonio Dias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar e Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999, p. 12-3. | Crédito da obra: coleção do artista.
Anywhere Is My Land, 1968
“Cheguei em Milão em agosto daquele ano [1968], depois de um conturbado ano vivido em Paris, onde eu havia recusado a figuração que já havia se esgotado para mim, com a minha atenção concentrada em objetos quase cúbicos, quase modulares, mas ainda com algumas protuberâncias de tipo orgânico. Parei de fazer esses objetos logo que cheguei à Itália. Eu pensava em espaços mais amplos, queria uma não imagem que pudesse ser tudo, comecei a fazer mapas como se fossem um percurso num deserto. E começa, exatamente, com esse trabalho: Anywhere Is My Land.” Roberto Conduru e Marília Andrés (orgs.). Antonio Dias: depoimento. Belo Horizonte: C/ Arte, 2010, p. 9. | Crédito da obra: coleção do artista.
AlphaOmega Biografia, 1968
“A questão do meu trabalho é quase sempre colocada em polaridades, em termos de micro e macro, preto e branco, mostrar e tapar. Informação para despistar.” Lúcia Carneiro e Ileana Pradella. Antonio Dias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar e Centro de Arte Hélio Oiticica, 1999, p. 34. | Crédito da obra: coleção do artista.
Boundaries, 1988
“Usei a eletricidade em vários trabalhos de diagramas. Acho que, tendo um circuito adequado, você se resolve. Até o uso dos metais no trabalho é um pouco relacionado com isso, de criar campos de energia, superfícies de óxido de ferro recobertas de camadas de grafite onde há mais possibilidade de concentrar energia, circuitos condutores em ouro ou cobre […]. De certa forma, a grafite é altamente condutora. [...] meu trabalho é com pigmentos minerais, na maior parte, não com pigmentos químicos. Então há uma escolha determinada de materiais, tipo: certo mineral como a malaquita ou um carbono como a grafite, ou ainda veneno, que tem a sua cor. Pela qualidade de ser veneno.” Hans-Michael Herzog. “Hans-Michael Herzog em conversa com Antonio Dias”. In: Hans-Michael Herzog (ed.). Antonio Dias: Anywhere Is My Land. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2010, p. 162. | Crédito da obra: coleção do artista.
Nota sobre a morte imprevista, 1965
Esta obra foi feita no ano do golpe militar de 1964, no Brasil, gerando impacto entre jovens artistas da geração de Antonio Dias. Em 1967, Hélio Oiticica considerou-a central para definir a vanguarda reunida na exposição coletiva da Nova Objetividade Brasileira, tal como escreveu no catálogo da mostra: “O fenômeno da demolição do quadro, ou da simples negação do quadro de cavalete, e o consequente processo, qual seja, o da criação sucessiva de relevos, antiquadros, até as estruturas espaciais ou ambientais, e a formulação de objetos, ou melhor, a chegada ao objeto, data de 1954 em diante […]. Considero, então, o ‘turning point’ [ponto de virada] decisivo desse processo no campo pictórico-plástico-estrutural, a obra de Antonio Dias – ‘Nota sobre a morte imprevista’, na qual afirma ele, de supetão, problemas muito profundos de ordem ético-social e de ordem pictórico-estrutural, indicando uma nova abordagem do problema do objeto […]. Daí em diante surge, no Brasil, um verdadeiro processo de ‘passagens’ para o objeto e para proposições dialético-pictóricas […]. Não é outra a razão da tremenda influência de Dias sobre a maioria dos artistas surgidos posteriormente”. (Hélio Oiticica. “Esquema Geral da Nova Objetividade”. In: Glória Ferreira e Cecília Cotrim (orgs.). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 154). | Crédito da obra: coleção do artista.
Niranjanirakhar, 1977
Em 1977, Antonio Dias viajou para o Nepal com um grupo de artistas, buscando inicialmente papéis artesanais para obras a serem impressas. Separou-se do grupo e foi parar numa comunidade de produtores manuais de papel, onde passou a residir. | Crédito da obra: coleção do artista.
Chapati para sete dias, 1977
Comunicando-se precariamente com os trabalhadores, ele iniciou uma preparação experimental de papéis, misturando ingredientes locais como chá e especiarias, que eram artigos caros para os moradores, mas não para o artista; o resultado surpreendeu-os. Desse processo coletivo resultaram as obras com papel do Nepal. | Crédito da obra: coleção do artista.
The Illustration of Art /Gimmick, 1972
Estes filmes foram feitos durante a estadia de Antonio Dias em Nova York. O artista mostra-se um ser frágil que sangra apesar dos curativos, imperfeito como o curto-circuito que ele mesmo provoca, imitador como um símio. Afinal, o que é a arte? Perante a ausência de uma resposta definitiva, cabe apenas ilustrar uma e outra vez as tentativas sempre provisórias de entender o ofício do artista. | Crédito da obra: coleção do artista.
KasaKosovoKasa, 1996
Esta obra integra a exposição Antonio Dias: derrotas e vitórias. Aqui, o artista utiliza uma fotografia ampliada dos pelos da própria barba, que continuam crescendo apesar da raspagem diária. Essa imagem recobre os cilindros que relembram o genocídio e a migração forçada durante a guerra da Sérvia, nos anos 1990; a foto, que dá a volta no cilindro e nunca termina, recorda os rituais irracionais de dor, tal como a lâmina de barbear que cotidianamente esfola o rosto masculino sem jamais triunfar de vez. | Crédito da obra: coleção do artista.
Seu marido, 2002
Nesta escultura móvel, a forma do duplo tridente aparece num personagem vibrante. O artista utilizou a mesma forma em diversas obras, ao longo de sua produção. A figura fálica e bem-humorada confere libido à vida, apesar de toda a finitude humana. | Crédito da obra: coleção do artista.
Curadoria Felipe Chaimovich
Imagens:
Obra Você escapando, 1964. Foto: Vicente de Mello
Obra Anywhere Is My Land, 1968. Foto: Renato Parada
Obra AlphaOmega Biografia, 1968. Foto: Roberto Cecato
Obra Boundaries, 1988. Foto: Everton Ballardin
Obra Nota sobre a morte imprevista, 1965. Foto: Vicente de Mello
Obras Niranjanirakhar, 1977, e Chapati para sete dias, 1977. Foto: Gabriele Basilico
Obra KasaKosovoKasa, 1996. Foto: Nego Miranda
Obra Seu marido, 2002. Foto: Vicente de Mello
Realização: Governo Federal, Ministério do Turismo e Museu de Arte Moderna de São Paulo
Patrocínio Credit Suisse
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