Os Santos da Afurada. Arte, Devoção e Comunidade – Parte I

Os Santos d'Afurada. Arte, Devoção e Comunidade - Parte IFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Barco de pesca no regresso de uma noite no mar (2021) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Afurada: território e comunidade

Situada na margem esquerda do rio Douro, a freguesia de São Pedro da Afurada é a mais pequena em área do concelho de Vila Nova de Gaia. O lugar surge desde cedo registado nos forais de 1255, 1288 e 1518. A fixação de uma comunidade composta por pescadores de outras geografias costeiras e motivados pelos recursos naturais, ganha aqui uma nova expressão na segunda metade do século XIX. O exponencial crescimento demográfico e o limitado espaço disponível para a construção de um aglomerado de maiores dimensões conduziram a uma acentuada transformação do território, através da conquista de terrenos ao leito do rio, pela deposição de entulhos, configurando uma malha urbana muito particular. Ao longo do tempo, com uma identidade moldada pelo quotidiano de um contexto piscatório, surgem na Afurada equipamentos de apoio à comunidade. Nos finais do século XIX é construída a creche que acolheu os órfãos do naufrágio de fevereiro de 1892 e edifica-se a antiga capela dedicada a São Pedro, em 1894, na Praceta agora denominada de São Pedro, o padroeiro da localidade. A construção da capela marca o momento de afirmação da comunidade e consagra definitivamente a área mais a norte da atual freguesia. No ano de 1952 são criadas a paróquia e a freguesia da Afurada, processo que beneficiou do empenho do então pároco, o Padre Joaquim de Araújo (1918-1999). A comunidade afuradense caracteriza-se pela personalidade forte e por um sentimento religioso vigorosamente enraizado. Empenhados em perpetuar as tradições, aqueles que habitam na Afurada fazem do bordão “Afurada é linda!” um mote identitário que se transmite de geração em geração.

Toque para explorar

Banhada pelo rio Douro, Afurada convida a momentos de contemplação e de deleite. A Rua da Praia adquire com o Programa Pólis (2005) uma reorganização de percursos e a valorização de passeios.

Pescadores a remendar as redes na Rua da Praia (1983) de João Tenente de SeixasFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Nesta rua reunia-se a comunidade local comprometida com suas atividades piscatórias.

Barcos de pesca da Afurada (2020) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Os aglomerados piscatórios apresentam características únicas que os individualizam. Na Afurada, a caíca era usada essencialmente no interior do estuário do Douro, sendo movida a remos e, por vezes, à vela.

Redes de pesca (2021) de Bruna RemelgadoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Para além das aventuras no alto mar, os homens dedicam-se igualmente à manutenção das embarcações e à reparação das redes no Porto de Pesca.

Mulher da Afurada (1970)Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Depois dos pescadores retornarem à terra com a mercadoria, cabe às mulheres a preparação e venda do mesmo.

As peixeiras (2021) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

É no mercado que atualmente as peixeiras encerram o ciclo da pesca. Mais contemporâneas na forma de vestir e nas expressões, entregam-se a uma atividade que já é intemporal na localidade e que tem passado de geração em geração.

Bilhete Postal, Arquivo Municipal do Porto (1910) de Carlos Pereira CardosoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

As mulheres na Afurada sempre tiveram um papel fundamental na comunidade. As lavadeiras nascem da necessidade de uma segunda fonte de rendimento. Essas mulheres enérgicas, depois de venderem o peixe iam ao rio lavar a roupa dos fregueses.

Os Tanques da Afurada. Obra do Programa Pólis (2021) de Bruna RemelgadoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Atualmente as mulheres já não lavam no rio, mas em tanques construídos pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, iniciativa que reconheceu uma tradição profundamente enraizada.

Embora algumas mulheres façam ainda desta atividade profissão, a grande maioria exerce-a por gosto e pelo convívio com as lavadeiras que aqui se reúnem diariamente.

Crianças a brincar no lavadouro (2016) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Acompanhadas pelos filhos pequenos, que brincam em grupo, as lavadeiras prolongam as atividades domésticas com a lavagem da roupa.

Os Estendais (2021) de Bruna RemelgadoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Os estendais fecham este quadro da Afurada, marcando a paisagem com os tons multicolores das roupas a secar ao sol. Colocados em frente aos tanques, os estendais refletem padrões de sociabilidade, correspondendo individualmente a uma determinada família.

Entrevista do Jornal Terras de GaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A roupa lavada à mão distingue-se pela qualidade do trabalho das lavadeiras e pelo cheiro do sabão e da lixívia que impregnam o ambiente.

Pelas ruas da Afurada (2021) de Bruna RemelgadoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Percorrer as ruas da Afurada é sentir a ligação que a comunidade tem com o lugar. O dia a dia, as dinâmicas relacionais e a devoção são vividas porta a porta, nos passeios e entradas das habitações.

Pelos passeios da Afurada distribuem-se mesas, bancos e cadeiras utilizados para o descanso, mas também para a recriação e convívio entre famílias e vizinhos. Na rua vive-se, conversa-se, canta-se e reza-se. A rua é palco do genuíno sentido de comunidade.

As portas abrem-se diretamente para a rua e são decoradas com plantas que embelezam as entradas. As fachadas são ainda dominadas pelos estendais, vassouras, bacias, baldes e outros auxiliares do trabalho doméstico e feminino.

Na Afurada vive-se o fervor religioso habitual entre as comunidades piscatórias. Aqui, a devoção está naturalmente associada à arte da pesca e aos perigos que ela acarreta e, por isso, os santos de maior devoção estão diretamente relacionados com o mar.

Igreja da Afurada após as obras de requalificação (2021) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Afurada e a sacralidade do lugar

A igreja, a Praceta de São Pedro e o porto de pesca são os lugares de sacralidade da Afurada. A Praceta de São Pedro é um espaço referencial de memória, outrora ocupado pela primeira capela da Afurada. No contexto urbano tem uma forte carga simbólica. É pontuada pela imagem do santo padroeiro que recorda a pré-existência da capela. A atual igreja paroquial, implantada na cota média da freguesia, surge da necessidade de ampliar o espaço de culto e resulta do aproveitamento da estrutura arquitetónica de uma fábrica inativa. O porto de pesca funciona como elemento unificador da Afurada. Para lá do seu caráter funcional ligado à atividade piscatória, assume-se como um lugar de devoção. Aqui ocorre anualmente a bênção das embarcações, no final da procissão de São Pedro, o que reforça a importância da devoção ao santo padroeiro e a sua ligação à atividade piscatória dominante na comunidade.

Primeira Capela dedicada a S. Pedro (1890) de História da Afurada - Pe. Joaquim de AraújoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A primeira Capela da Afurada, dedicada a São Pedro, foi construída entre 1894 e 1908 e resultou da ação de João José de Almeida.

Destruição da Capela de S. Pedro da Afurada (1909) de Tabacaria VareirenseFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A 23 de dezembro de 1909, a Capela de São Pedro da Afurada foi parcialmente destruída com o embate e naufrágio da Barca América.

Comemoração do nascimento da Paróquia da Afurada (1952) de História da Afurada - Pe. Joaquim de AraújoFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Após as cheias de dezembro de 1909, a Capela de São Pedro foi reconstruída no mesmo local.

A nova Igreja da Afurada (2021) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A opção pela edificação de uma nova igreja num local mais elevado, determinou a demolição da capela em 1969, o que gerou um sentimento de perda no seio da comunidade.

Carlos Marques - Capela da AfuradaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Apreço, afetividade e reconhecimento são as palavras que se destacam no discurso do afuradense Carlos Marques sobre a primeira capela.

A Praceta de S. Pedro é inaugurada em 1969 de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Para assinalar a sacralidade do lugar foi colocada, em 1969, uma imagem de São Pedro sobre um pedestal de granito.

Toque para explorar

A autorização para a construção de uma igreja paroquial para Afurada foi concedida, em 1951, pelo bispo do Porto D. Agostinho de Jesus e Sousa.

Maqueta do projeto da nova igreja (1954) de Manuel Leão Foundation, Teófilo Rego Photgraphic FundFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A obra foi assumida como tema de exame final dos alunos da Escola de Belas Artes do Porto e o projeto final resultou das soluções apresentadas pelos melhores trabalhos.

O arquiteto escolhido para a readaptação do anterior edifício na nova igreja paroquial da Afurada foi Carlos Ramos, então Diretor da Escola de Belas Artes do Porto.

Igreja de São Pedro da Afurada e rio Douro (2014) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A primeira pedra da igreja paroquial foi benzida a 22 de abril de 1954.

Afurada: devoção e práticas religiosas (2014) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Afurada: devoção e práticas religiosas

A comunidade piscatória da Afurada manifesta uma grande devoção a São Pedro, o seu santo padroeiro, invocando-O nos momentos de maior aflição e dedicando-Lhe vários dias de festejos em finais do mês de junho. O culto a Nossa Senhora de Fátima, cuja afirmação coincide com a criação da paróquia, conhece nesta comunidade uma importância muito particular. O fervor religioso, vivenciado e exteriorizado pela população da Afurada, constitui uma das expressões culturais e identitárias deste lugar.

Imagem de Nossa Senhora Estrela do Mar (2014) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A devoção a Nossa Senhora Estrela do Mar conheceu uma forte expressão na localidade, corroborando o significado histórico que o culto mariano assumiu nas comunidades piscatórias.

Andor de Nossa Senhora Estrela do Mar (2017) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

As festas de Nossa Senhora da Estrela do Mar eram organizadas pelos homens da pesca do bacalhau. Atualmente, a imagem continua a ser conduzida na procissão anual em honra de São Pedro.

Procissão de São Pedro da AfuradaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Itinerário da procissão da Afurada (2021) de Google EarthFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A procissão de São Pedro percorre todo o território da freguesia, unificando-a simbolicamente.
Este itinerário solene une as Afurada de Cima e de Baixo.

Viva o São PedroFaculdade de Letras da Universidade do Porto

O apego ao território e ao Padroeiro é um dos momentos mais marcantes de toda a procissão de São Pedro. Ao longo do percurso é possível ouvir, repetidamente, o bordão “Afurada é Linda” e a exaltação da invocação “Viva o São Pedro, Viva o nosso padroeiro”.

Andor de S. Pedro (2014) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A Procissão de São Pedro da Afurada é uma das mais afamadas celebrações do concelho de Vila Nova de Gaia.

Imagem Peregrina de Fátima em Visita à AfuradaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Em 2016, ano da comemoração do centenário de Nossa Senhora de Fátima, a imagem peregrina percorreu todas as paróquias do país.

"Imagem Peregrina" de Nossa Senhora de Fátima (2016) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A "Imagem Peregrina" de Nossa Senhora de Fátima percorreu o Porto de Pesca e a Rua da Praia.

Imagem Peregrina do Santuário de Fátima na AfuradaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Créditos: história

CREDITS

Os Santos d’Afurada. Arte, Devoção e Comunidade

EXHBITION COORDINATORS & SCIENTIFIC COMMITTEE & CURATORSHIP: Ana Cristina Sousa (FLUP/CITCEM), Maria Leonor Botelho (FLUP/CITCEM) e Cátia Oliveira (CITCEM)

TEXTS: Aida COELHO, Ana Carolina RESENDE, Ana CARVALHO, Ana Cristina SOUSA, Ana GUEDES, Ana João SILVA, Bruna REMELGADO, Catarina DIAS, Cátia OLIVEIRA, Clarisse Rangel PAMPLONA, Claúdia Costa PIRES, Daniela Fatela GERALDES, Débora SILVA, Diana NEVES, Eduardo Abreu De CARVALHO, Hélia Luís GAMA, Inês PINHO, Liana VARASSIN, Rodrigues ALVES, Maria Leonor BOTELHO, Mariana Cardoso Da SILVA, Nathália Fernandes SOUZA, Raquel VIEIRA, Ricardo RODRIGUES, Veronica HORNYANSKY

PHOTO CREDITS: Arquivo Histórico Municipal do Porto, Biblioteca Central de Marinha - Arquivo Histórico (BCM-AH), Bruna Remelgado, Cátia Oliveira, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, João Seixas, Jornal de Notícias.

VIDEO CREDITS: Cátia Oliveira, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, DOT. Design e Comunicação, Drone Vision.

IMAGE PRODUCTION: Cátia Oliveira e DOT. Design e Comunicação.

EXIBITION PRODUCTION: Cátia Oliveira e Diana Felícia

TRANSLATION: Hugo Alves

[This translation is financed by National Funds through the FCT - Foundation for Science and Technology, under the project UIDB/04059/2020]

ORGANIZATION: CITCEM & FLUP

PARTNERSHIP: UP, CMVNG, CIPA e Paróquia da Afurada.

SPONSORS: Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, DOT. Design e Comunicação.



REFERENCES
PRIMARY SOURCES
Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Processo de Aluno Altino Maia. Escola Superior de Belas-Artes do Porto, 1942.

Processo de Aluno Altino Maia. Escola Superior de Belas-Artes do Porto, 1946, 3ª Secção, L. 27, No. 1016.

Documentação Particular
NETO, Francisco (antigo sacristão da paróquia de São Pedo da Afurada). Documentação particular.

REFERENCES
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GARRADAS, Cláudia (2008). A Colecção de Arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto - Gênese e História da uma Colecção Universitária. Porto: Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Dissertação de Mestrado.
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OLIVEIRA, Nuno (2013). CIPA. A memória de um lugar. (CIPA, Ed.) Iniciativa: APDL - Administração dos Portos do Douro e Leixões.
SÁ, Sérgio de Oliveira e (2015). Altino Maia: o pensar e o fazer do escultor. Breve e eventual contributo para uma análise à sua obra. Maia: Edição do Autor.

Créditos: todos os meios
Em alguns casos, é possível que a história em destaque tenha sido criada por terceiros independentes, podendo nem sempre refletir as visões das instituições, listadas abaixo, que forneceram o conteúdo.
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