Introdução por Eder Chiodetto, Curador do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM
Colecionar arte é a possibilidade de olhar por um viés fascinante para a
diversidade humana. É colocar em perspectiva pontos de vista que se
descolam da obviedade aparente e nos fazem refletir em profundidade sobre
os mais distintos aspectos da vida em sociedade. Logo, os museus e suas
coleções são espaços democráticos que fomentam a reflexão, a convivência
das diferenças, o debate sem dogmas, a formação de repertório.
O Clube de Colecionadores de Fotografia do Museu de Arte Moderna de São
Paulo, tendo este foco, foi criado em 2000. Ao completar agora 20 anos e 21
edições, reúne obras de 107 artistas que passaram a integrar o acervo do
museu e também as coleções particulares de centenas de pessoas que
fazem ou fizeram parte do Clube nessas duas décadas.
A exposição comemorativa dos 20 anos do Clube, que aconteceria em março
de 2020, está aguardando a passagem da pandemia para poder acontecer
fisicamente na sala Paulo Figueiredo. Enquanto isso, o público pode ver essa
prévia que o museu organizou.
Olhar em perspectiva as imagens que formam o acervo do Clube de
Colecionadores de Fotografia do MAM é uma oportunidade rica e original de
conhecer a história recente do país contada por fragmentos que, quando
conectados, são capazes de representar múltiplas camadas da nossa cultura,
dos anseios e das fraturas de uma democracia que luta por se firmar, da
singular beleza natural de seu povo, das possibilidades semânticas da
fotografia em espelhar nossa complexidade.
A arte é e sempre será a trincheira na qual nos abrigamos e nos conectamos
com o outro para ativar uma percepção sensível sobre nosso entorno, a partir
da qual criamos uma visão menos dogmática, mais libertária e humanista.
Aos sócios do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM de hoje, de
ontem, de sempre, e a vocês que frequentam o museu, nossos mais sinceros
agradecimentos por fazer com que sigamos acreditando em nossos sonhos.
Linhas curatoriais
Identidade nacional, Documental imaginário, Limites/Metalinguagem, Retrato/Autorretrato e Vanguardas históricas são as frentes de pesquisa criadas pelo curador Eder Chiodetto, desde 2006, com o intuito de mapear as principais linhas de força da fotografia brasileira para que tanto o acervo do MAM São Paulo como as coleções particulares que se formam a partir das escolhas do curador, em comum acordo com a curadoria do museu, formem um conjunto representativo da produção nacional. Essas linhas de investigação - que não são estanques entre si - servem de parâmetro à curadoria.
Identidade nacional
Em Identidade nacional, a pesquisa se insere na tradição brasileira do fotodocumentarismo, que trabalha, na maioria das vezes, temas ligados à cultura, problemas sociais, histórias que revelam em profundidade bastidores do país e raramente vêm à tona. Maureen Bisilliat, André Cypriano, Nair Benedicto, Paula Sampaio, Paulo Nazareth, Ricardo Teles e Bárbara Wagner, entre outros, integram esse grupo.
“Trancoso, Bahia” possui uma rica gama de tons que variam entre branco, cinzas e preto para representar céu, mar, e árvores numa paisagem que, embora já claramente reorganizada pelo homem, guarda em si sinais de harmonia e exuberância. O vento que faz as árvores balançarem, e que a câmera lentamente registra, funciona como uma espécie de marcador do tempo a tabular esse momento de contemplação e ancestralidade.
Esta obra realizada em Cumaru (PA), em 1982, poderia estar em qualquer bom livro que se esforçasse por contar a história do Brasil fora dos cânones oficiais. Walter Carvalho conseguiu num só instante unir a história da especulação em torno do garimpo do ouro e também aludir ao fascínio do cinema - a sétima arte - como uma válvula de escape num território marcado por disputas violentas de poder.
Ter a fotografia como ferramenta capaz de reativar a imaginação infantil cunhada na paisagem amazônica e, assim, amalgamar sonho e realidade nas suas imagens é uma das vigorosas vertentes da obra de grande originalidade de Elza Lima. A artista paraense tem a capacidade de perceber ângulos e organizar planos que resultam em composições primorosas e surpreendentes nas quais os elementos enquadrados por esse olhar tenso e inquiridor se relacionam entre si, criando uma espécie de dança para os olhos.
Documental Imaginário
Documental Imaginário é a frente de pesquisa que busca incorporar à coleção do museu uma vertente renovada do fotodocumentarismo, que surge claramente após a década de 1990 e se acentua com o desenvolvimento das novas tecnologias. Nela, ao ponto de partida documental soma-se uma grande subjetividade, tendo muitas vezes a literatura e o cinema como inspiração. O trabalho de pós-produção injeta uma carga de lirismo despreocupado com o purismo de um relato realista, em diálogo inesperado com a poética do realismo mágico da literatura latino-americana. Alguns trabalhos que se identificam com essa tendência e foram integrados à coleção do MAM nos últimos anos por intermédio do Clube de Colecionadores de Fotografia são de autoria de Luiz Braga, Cia de Foto, Pedro Motta, João Castilho e Cao Guimarães, entre outros.
Utilizando da ironia, Berna utiliza uma referência universal do imaginário e da cultura popular: o musical "Singing in the Rain", estrelado por Gene Kelly, de 1952, transportado para o ambiente de um lixão. Sobre um improvável tapete vermelho, surge um ser enigmático, resplandecente em sua roupa dourada, extremamente feliz, empunhando um guarda-chuva e sapateando ao som da canção. A máscara, à prova de odores, enfatiza ainda mais o distanciamento e desprezo desse ser por esse local fétido e dantesco.
Quem é esse personagem sinistro? O que ele quer? O que faz nesse lugar? É o arauto do juízo final?
O primeiro passo para fotografar um tema complexo como o das seitas religiosas é não ter dogmas e convicções próprios como parâmetro para julgar a fé alheia. Guy Veloso manteve-se nessa busca por mais de uma década, até seus registros romperem com o padrão clássico do documentarismo para mergulhar numa estética renovada, na qual ele nos coloca em contato com uma nova ordem de dimensões. As imagens tornam-se orgânicas Por vezes é necessário experimentar, expandir a linguagem, romper com os manuais, para que o realismo, que também se oculta no não visível, irrompa com maior contundência.
Limites/Metalinguagem
Limites/Metalinguagem é a frente exploratória que mais trabalhos tem oferecido ao acervo e aos sócios do Clube, justamente por travar um diálogo mais abrangente com o restante da coleção de arte contemporânea do MAM. Isso pode ser observado pela ampliação do repertório que a fotografia passou a exibir após incorporar o pensamento de teóricos que, sobretudo na segunda metade do século XX, desconstruíram a relação de mimese da fotografia com um suposto real. Os muitos inputs tecnológicos das últimas décadas também reconfiguram a fotografia em sua gênese gerando trabalhos híbridos e que refletem questões prementes do contemporâneo.
A fotografia passou a integrar o arsenal de ferramentas de artistas que não são fotógrafos strictu sensu, mas se apropriam da imagem fotográfica das mais variadas maneiras como suporte para seus trabalhos, como nos casos de Rosângela Rennó, Nuno Ramos, Adriana Varejão, Odires Mlászho, Amilcar Packer, Sandra Cinto, Thiago Rocha Pitta, Cinthia Marcelle, Lia Chaia, entre outros.
Outros artistas enveredam, em algumas de suas séries, por um questionamento que atinge o cerne da própria gestação de imagens técnicas, discutindo o estatuto da fotografia seja por questões formais, seja por uma crítica bem articulada ao predomínio da imagem e de seus desígnios na sociedade contemporânea. É o ramo que chamamos de Metalinguagem. É o caso de trabalhos como os de Fernando Lemos, Guilherme Maranhão, Vicente de Mello, Caio Reisewitz, Rochelle Costi, Márcia Xavier, Lucia Koch, Bob Wolfenson e Edu Marin, entre outros.
"Problemas Nacionales", realizada durante viagem pela América Latina, como o próprio artista descreve abaixo para os colecionadores do Clube, é uma obra que podemos chamar de meta-fotografia! Não há nela, é verdade, uma imagem fotográfica tal qual estamos acostumados a observar. Porém, a placa com essa estranha inscrição, ao ser "instalada" na casa ou em outro lugar que o colecionador optar, tem o poder de rapidamente vaticinar que em seu entorno há um problema (nacional) a ser observado.
A inscrição "Problemas Nacionales", portanto, é uma meta-imagem que tem a potente capacidade de reconfigurar a percepção do espaço onde quer que ela seja colocada.
Lançando mão de sua genialidade para pensar a estrutura da fotografia, como comumente ele o fez com a escultura e a pintura, Leirner recorreu a um dos livros seminais de teoria sobre a fotografia: a obra "A Câmara Clara", de Roland Barthes. Entre outros conceitos, Barthes cunha o termo "isso-foi", no qual demonstra a ideia de que a fotografia, por ter um referente que precisa ser necessariamente real e posto diante da objetiva, prova a presença do que é representado. Desafiando essa noção do "isso-foi", Leirner fotografou um papel fotográfico virgem, gerando assim a fotografia de uma fotografia sem imagem. Uma fotografia destituída, portanto, do "isso-foi" barthesiano, posto que, quando fotografada, ela estava num estado de "vir a ser". Leiner sequestra o "isso-foi" e nos entrega algo como o "isso-será". Será?
As mutações da natureza, os ciclos da vida e a percepção dos incessantes movimentos internos da matéria naquilo que está aparentemente estático aos nossos olhos, norteiam alguns trabalhos gerados a partir da pesquisa contínua de Thiago Rocha Pitta. É como se esse Cinema Fóssil, num golpe de vista, tivesse sido substituído por uma tela de pintura. Neste fragmento de tempo interrompido, neste fotograma único extirpado de um provável filme, os símbolos voltam a encontrar sua ambivalência e narram de forma sutil e poética os ciclos da vida, a vulnerabilidade da natureza, os enigmas do homem e da arte.
Podemos pensar que essa frase-obra é um comentário lúcido e corajoso acerca do sistema de arte, das relações nem sempre harmoniosas entre as demandas e os vícios do mercado de arte e a liberdade criativa que deve nortear a ação dos artistas. Porém, essa espécie de axioma criado pela artista, não intenciona fazer uma “crítica ao sistema da arte como uma acusação unidirecional. O que me interessa é o molejo ambíguo que aponta ora para arte, ora para o crime. Ambivalência ou dialética entre esses dois mundos", diz Carmela.
Após fotografar as posses dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (série "Empossamento") e de Barack Obama, Mauro Restiffe chegou a Havana, em Cuba, três dias após a morte de Fidel Castro para fotografar o momento histórico na ilha. Além de estar circunscrita a esse circuito de eventos históricos e políticos que marcaram nossa geração, nessa imagem Restiffe vale-se também do uso dos reflexos - que inscreve imagem sobre imagem - outro recurso recorrente de sua produção que flerta com a metalinguagem do gesto fotográfico.
Retrato/Autorretrato
Retrato/Autorretrato é a frente de pesquisa que busca pontuar na produção nacional a evolução e a complexidade que a representação do outro e de si próprio alcançou nos dias de hoje. O corpo como identidade, alteridade, afirmação do eu e também da criação livre de outros possíveis. Corpo social, poético, demarcador e libertador de limites. Sempre político. É, certamente, o gênero de fotografia mais presente em toda a história. Há na coleção obras de Paulo Bruscky, Rodrigo Braga, Tony Camargo, Vera Chaves Barcellos, Felipe Cama, Cristina Guerra, Lenora de Barros, entre outros.
Percepção crítica aliada ao uso original e expansivo da linguagem fotográfica, se reúnem na obra "Sem título" (2006/2010), da série Brasília Teimosa, da artista recifense Bárbara Wagner. Ao utilizar a luz comumente utilizada na publicidade para retratar os moradores de uma comunidade socialmente vulnerável, Bárbara desvela o jogo perverso que se oculta no modus operandi da linguagem fotográfica. Esta série tem ainda o mérito de nos reconectar com o melhor das cores, da alegria descompromissada, dos prazeres mundanos, da fraternidade e da afetividade do povo brasileiro. Este garboso senhor invoca a recriação de um Macunaíma contemporâneo.
Na representação metafórica desta filha de Godiva, Vera elege sua própria nudez como ponto de partida. Dentro da moldura de um espelho vemos um autorretrato sobre o qual são aplicados três fragmentos de radiografias realizadas em exames médicos.
A imagem refletida do espelho, ou a possibilidade mágica de nos vermos como um outro, foi tudo o que a invenção da fotografia ambicionou registrar de forma perene. Vera utiliza este subterfúgio para estancar, nesta performance, o tempo em seu corpo sadio aplicando sobre ele suas radiografias que o revelam por dentro, onde a imagem aponta para nossa vulnerabilidade.
Essa imagem integra a série “Symphony of Erotic Icons” composta por Alair Gomes a partir de imagens de rapazes fotografados em seu apartamento, em Ipanema, tendo o padrão da beleza apolínea da estatuária greco-romana como referência. “Symphony of Erotic Icons” foi a primeira composição sequencial realizada por Alair, entre 1966 e 1978. Considerada sua obra-prima, é dedicada totalmente ao nu masculino e compreende um conjunto de 1.767 fotografias. A série é estruturada em cinco movimentos: “Allegro”, “Andatino”, “Andante”, “Adagio” e “Finale”. Para Alair, a construção desse universo fotográfico almejava “transcender a sua personalidade”, criando um estado “proto-religioso”.
Vanguardas Históricas
Vanguardas Históricas visa integrar ao acervo do museu autores e trabalhos que em diversos momentos da história da fotografia brasileira tiveram uma importância fundamental para renovar a produção e o pensamento do fazer fotográfico, revendo e quebrando paradigmas, lançando novas possibilidades de abordagens tanto artísticas como políticas, por vezes ambas. É o caso de Boris Kossoy, Fernando Lemos, Nair Benedicto, Claudia Andujar, Thomaz Farkas, German Lorca, Maureen Bisilliat, Walter Firmo, Cristiano Mascaro e Vânia Toledo, entre outros.
“Outros Tempos” (1970), obra de Boris Kossoy (São Paulo, 1941), sintetiza metaforicamente a atmosfera sombria dos anos de chumbo, marcados pela intolerância, medo, violência e falta de liberdade de expressão no Brasil e na América Latina. Em 1971 essa obra se juntaria a outras para ilustrar as páginas de “Viagem pelo Fantástico” (editora Kosmos). Livro histórico e corajoso, que em suas labirínticas tramas narrativas usava imagens enigmáticas e de forte sentido simbólico para realizar realizava uma crítica contundente à ditadura em tons dramáticos de preto e branco bem contrastado.
Rosila é o nome da mulher que, vinda de Ipiaú, na Bahia, foi morar na ladeira da Montanha, perto do Elevador Lacerda, em Salvador. Tornou-se cafetina e conhecida do escritor Jorge Amado que por ali andava, em 1966, durante suas pesquisas para um novo romance. Foi então que Flávio Damm foi chamado pelo escritor para fazer algumas fotografias que ilustrariam "Mulher Dama", o seu novo romance. Damm, fotógrafo de destaque dos tempos áureos da revista Cruzeiro realizou esse retrato incrível com os olhos de Rosila nos olhando no fundo da alma.
Eder Chiodetto - curador do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM
Conheça o Clube de Colecionadores em mam.org.br/clube
Realização: Governo Federal, Ministério do Turismo e Museu de Arte Moderna de São Paulo