Os Santos d'Afurada. Arte, Devoção e Comunidade - Parte II

Os Santos d'Afurada. Arte, Devoção e Comunidade - Parte IIFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Interior da igreja da Afurada (1955) de Cinemateca PortuguesaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Altino Maia: o escultor dos Santos da Afurada

A nova igreja de São Pedro da Afurada foi concebida no ano de 1954, segundo projeto coordenado por Fernando Seara e assinado pelo arquiteto Carlos Ramos, diretor da Escola de Belas Artes do Porto (1952-1967). A obra teve por base o reaproveitamento de uma antiga fábrica de guano. No entender de Carlos Ramos, havia a necessidade de um programa iconográfico que fosse concordante com a linguagem modernista do espaço, criando uma desejada unidade plástica. O arquiteto propôs o nome de Altino Maia (1911-1988), estudante de cultura da mesma escola que foi convidado a produzir nove esculturas de vulto para a igreja da Afurada. As imagens dos santos deveriam ser executadas até à inauguração da igreja, que ocorreu em 1955. No mesmo ano foi feita a encomenda de um Crucifixo ao escultor e, em 1956, a da Via Sacra, um conjunto de catorze relevos atualmente expostos na parede norte da igreja. Altino Maia adquiriu os primeiros conhecimentos de imaginária na oficina dos Sás, na Maia, onde aprendeu a desenhar espontaneamente e a executar o talhe direto. A 23 de novembro de 1939 ingressou na Escola de Belas Artes do Porto no curso de escultura. Durante o seu percurso académico foram-lhe atribuídas diversas bolsas de estudo, tendo-lhe uma delas permitido frequentar a Escola Superior de Belas Artes Santa Isabel da Hungria. Passou igualmente pelas oficinas de Mestres Imaginários em Valladolid e Santiago de Compostela beneficiando de uma bolsa do Instituto de Alta Cultura. Obteve ainda outras bolsas atribuídas pela fundação Calouste Gulbenkian, que lhe permitiram viajar pela Europa. Nessas viagens terá conhecido figuras ilustres das Letras e das Artes como Joan Miró e Pablo Picasso. Na sua vida profissional cruzou-se com personalidades de referência no panorama cultural da época tais como Almeida Negreiros, Diogo de Macedo, Dórdio Gomes, Francisco Franco, José Régio e Jorge de Sena.

Altino Maia a esculpir a imagem de S. João (1955) de Arquivo pessoal de Sérgio O. SáFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Altino Maia, enquanto estudante da Escola de Belas Artes do Porto, estava familiarizado com os movimentos artísticos da época, o que lhe permitiu desenvolver o seu próprio pensamento e estética.

Toque para explorar

A Escola de Belas Artes do Porto foi fundada em 1881, no âmbito da reorganização da Academia.

As imagens na Escola Superior de Belas Artes (1955) de Fundação Manuel Leão, Fundo Fotográfico Teófilo Rego.Faculdade de Letras da Universidade do Porto

As imagens criadas por Altino Maia não visam uma compreensão imediata, mas uma lenta revelação que se relaciona com a observação conceptual das peças e uma devoção espiritual.

Suplemento Literário do Jornal de Notícias (1955) de Jornal de Notícias e Barata Feyo, "On the subject of recent images conceived by Altino Maia"Faculdade de Letras da Universidade do Porto

Barata Feyo afirma que o conjunto das imagens é revelador da sabedoria artística de Altino Maia.

"A propósito das imagens concebidas por Altino Maia."

Santa Inês (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Nas imagens de Altino Maia observa-se uma redução formal a nível linguístico e icónico.

Nossa Senhora de Fátima (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

O artista reduz a linguagem ao essencial no tratamento das vestes.

Para Altino Maia, a matéria tem a sua própria expressividade, procurando-a explorar através de planos amplos e retos.

Santa Luzia (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Altino Maia utiliza a cor como elemento expressivo da forma.

Santa Luzia exibe um prato com os olhos, o seu principal atributo, que permite a sua identificação.

Nesta escultura observa-se o uso canónico das cores vermelha, azul e amarela.

Chegada dos andores à Afurada (1955) de Cinemateca PortuguesaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Os Santos d’Afurada de Altino Maia

Os Santos “Pretos”, a Via Sacra e o Cristo Crucificado formam o conjunto de imaginária concebido por Altino Maia para o programa decorativo e devocional da Igreja Paroquial de São Pedro da Afurada. As figuras atestam a dualidade de um autor que faz uso de materiais e técnicas tradicionais para demonstrar as suas características modernistas. Apesar de serem desconhecidas as razões que conduziram à escolha destas invocações, é possível reconhecer, em todas elas, ligações afetivas com a comunidade afuradense. Nesse sentido, distinguem-se os santos muito cultuados em comunidades piscatórias como São Pedro (o padroeiro) e São João Batista (patrono da paróquia da Foz do Douro fronteira a Afurada), mas também Nossa Senhora de Fátima, cuja afirmação do culto coincide com a década da construção da igreja paroquial. Intercessores privilegiados junto do Sagrado, é para os santos que os fiéis dirigem os seus medos, rogam proteção, fazem promessas e oferecem votos por graça recebida.

Santos “Pretos” da Afurada (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Via Sacra (1957) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A Via Sacra recorda a Paixão de Cristo durante a subida ao Calvário. Experienciados primeiramente pelo teatro litúrgico, os Passos foram materializados em suportes artísticos, colocados nos muros das igrejas ou a marcar a subida íngreme de uma colina.

Cristo Crucificado (1956) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A iconografia de Cristo Crucificado obedece a um modelo de longa tradição cristã, que exibe a representação do Salvador morto na Cruz.

Esculpida em madeira, a imagem perdeu a cor original, tendo sido repintada pelos fiéis da Afurada.

Santo António (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Em Portugal, a já forte devoção a Santo António, intensificou-se com a chegada da Sua relíquia, oferecida por Pádua, em 1968. É festejado entre os Santos Populares.

A mão esquerda segura um livro com uma inscrição, entendida como um pedido de contínua inspiração para fazer da retórica, da verdade e da sabedoria caminhos de evangelização.

Nossa Senhora de Fátima (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

A devoção a Nossa Senhora de Fátima assenta na crença das aparições da Virgem a três crianças pastoras - Lúcia (beatificada em 2008), São Francisco Marto e Santa Jacinta Marto (canonizados em 2017) -, no lugar da Cova da Iria, atualmente conhecido como o Altar do Mundo.

São José (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

São José é o santo padroeiro dos trabalhadores, dos carpinteiros, da boa morte e Pai da Igreja Universal. A sua Festa Litúrgica celebra-se a 19 de março, atualmente o Dia do Pai.

Segura no colo o Menino, demonstrando o Seu papel na educação de Jesus e a essência do seu amor paternal.

São João Batista (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

São João Batista retirou-se muito jovem para o deserto da Judeia para viver em penitência, pregando a vinda do Salvador e batizando Jesus no rio Jordão.

Na iconografia tradicional cobre o magro corpo com uma pele de camelo e um manto normalmente vermelho, exibindo longos cabelos e barbas.

São Pedro (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Entendido como o “Príncipe dos Apóstolos”, Simão Pedro recebe a missão de edificar a Igreja de Cristo – Pedro significa “pedra” em latim. Pescador de ofício, é muito venerado em comunidades piscatórias, o que explica o seu culto na Afurada.

Na mão direita segura duas chaves, uma de ouro e outra de prata, simbolizando o céu e a terra, o absolver e o excomungar.

Santa Luzia (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Santa Luzia é conhecida como a protetora dos olhos. Seu nome vem de Lúcia, que em latim significa luz ou caminho de luz.

Santa Inês (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Santa Inês (casta) é o modelo de pureza e de fé inabalável, por ter permanecido fiel ao seu voto e compromisso para com Cristo apesar dos suplícios que padeceu. Louvada pela preservação da sua castidade, converteu-se na padroeira das virgens, das noivas e das vítimas de violação.

Santa Inês (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Inês representa, deste modo, a personificação feminina do "Agnus Dei", o cordeiro imolado e consagrado a Deus.

Santa Ana (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Santa Ana, símbolo de maternidade e de pureza, é mãe de Maria e avó de Jesus.

Pela sua fé em Deus, foi-lhe concedida a Graça de ser mãe em idade avançada. Padroeira das avós e das mulheres, Santa Ana é a personificação do amor que protege a Humanidade.

Sagrado Coração de Jesus (1955) de Altino MaiaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Na imagem do Sagrado Coração de Jesus de Altino Maia é possível observar três símbolos de grande importância espiritual: o sagrado coração, as chamas e a cruz.

Esta devoção reflete o sentimento da Igreja em relação ao Amor e Compaixão do Coração de Cristo pela Humanidade.

Chegada das imagens à Afurada (1955) de Arquivo Histórico da MarinhaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

AFURADA e os Santos “Pretos” de Altino Maia

A 10 de julho de 1955, pelas 15:30h, iniciou-se a cerimónia de inauguração da nova igreja de São Pedro da Afurada, um evento de grande aparato que se estendeu à outra margem do rio Douro. As nove imagens criadas por Altino Maia chegaram à Afurada numa procissão fluvial, levadas por traineiras ornamentadas e acompanhadas por barcos de pesca. O desfile teve início no cais da Ribeira do Porto, onde as imagens foram benzidas pelo bispo da cidade – D. António Ferreira Gomes (episc. 1952-1982). Cada imagem seguiu no seu barco até à Praceta de São Pedro, na Afurada, onde eram ansiosamente esperadas. Chegadas ao destino, as imagens foram carregadas em andores pela população da Afurada até ao interior da nova igreja, que também recebeu a bênção do bispo D. António Ferreira Gomes. Aí foram colocadas nas suas respetivas mísulas, substituindo as antigas imagens. Desde logo fez-se sentir um incómodo entre os paroquianos, uma vez que o conjunto de esculturas se diferenciava das figuras tradicionais a que estes estavam habituados. No seio da comunidade, poucos foram os que não mostraram desagrado pelas novas imagens. O conjunto ficou popularmente conhecido como “Os Santos Pretos” devido à sua singela policromia e estilo inovador, que dificultava o reconhecimento emotivo dos santos à época e no seu novo contexto devocional. Coube ao Padre Joaquim Araújo criar as primeiras ações de sensibilização com o objetivo de tornar a população da Afurada mais recetiva a este conjunto escultórico, o que, com a passagem do tempo, acabou por acontecer. No entanto, apesar dos esforços realizados, assim que o Padre Araújo se retirou da paróquia, em março de 1999, as imagens concebidas por Altino Maia foram também apeadas das suas mísulas. Com a entrada do Padre Saraiva, as esculturas foram substituídas por imagens mais convencionais e que continuam a ser atualmente objeto de culto. Os “Santos Pretos” foram, por sua vez, exilados em armários na sala-museu /sacristia da igreja, escondidos assim dos olhos do mundo.

Cinemateca Portuguesa - Chegada das Imagens à AfuradaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Página do Jornal de Notícias (1955-07-11) de Jornal de NotíciasFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Milhares de Pessoas assistiram ao desfile de uma grande e imponente procissão fluvial.

“Como uma mancha colorida e movimentada a procissão fluvial inicia o seu desfile até à Afurada”.

Inicio do desfile fluvial (1955) de Arquivo Histórico da MarinhaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

"As nove imagens iam uma em cada barca devidamente enfeitada."

Chegada das imagens à Afurada (1955) de Arquivo Histórico da MarinhaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

10 de julho de 1955, na subida para a igreja (1955) de Arquivo Histórico da MarinhaFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Milhares de pessoas aguardavam a chegada das imagens.

Interior da igreja com as imagens atuais (2015) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

As imagens de Altino Maia imediatamente geraram desconforto, tendo sido rejeitadas pela comunidade que passou a designá-las como "Santos Pretos". As esculturas foram substituídas por imagens tradicionais.

Igreja durante as obras de requalificação (2021) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

No presente ano de 2021, com o intuito de conferir uma maior dignidade ao edifício, este tem sido alvo de obras de requalificação.

Imagens guardadas na sacristia (2021) de Cátia OliveiraFaculdade de Letras da Universidade do Porto

Excetuando os relevos da Via Sacra pendurados na parede norte da nave e o Cristo Crucificado, as nove esculturas de Altino Maia foram e continuam enclausuradas nos armários da sacristia da igreja.

Urge tornar as imagens públicas, expô-las aos olhos do mundo, fazendo-as cumprir a missão para as quais foram concebidas.

Créditos: história

CREDITS
Os Santos d’Afurada. Arte, Devoção e Comunidade

EXHBITION COORDINATORS & SCIENTIFIC COMMITTEE & CURATORSHIP: Ana Cristina Sousa (FLUP/CITCEM), Maria Leonor Botelho (FLUP/CITCEM) e Cátia Oliveira (CITCEM)

TEXTS: Aida COELHO, Ana Carolina RESENDE, Ana CARVALHO, Ana Cristina SOUSA, Ana GUEDES, Ana João SILVA, Bruna REMELGADO, Catarina DIAS, Cátia OLIVEIRA, Clarisse Rangel PAMPLONA, Claúdia Costa PIRES, Daniela Fatela GERALDES, Débora SILVA, Diana NEVES, Eduardo Abreu De CARVALHO, Hélia Luís GAMA, Inês PINHO, Liana VARASSIN, Rodrigues ALVES, Maria Leonor BOTELHO, Mariana Cardoso Da SILVA, Nathália Fernandes SOUZA, Raquel VIEIRA, Ricardo RODRIGUES, Veronica HORNYANSKY

PHOTO CREDITS: Arquivo Histórico Municipal do Porto, Biblioteca Central de Marinha - Arquivo Histórico (BCM-AH), Bruna Remelgado, Cátia Oliveira, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, João Seixas, Jornal de Notícias.

VIDEO CREDITS: Cátia Oliveira, Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, DOT. Design e Comunicação.

IMAGE PRODUCTION: Cátia Oliveira e DOT. Design e Comunicação.

EXIBITION PRODUCTION: Cátia Oliveira e Diana Felícia

TRANSLATION: Hugo Alves

[This translation is financed by National Funds through the FCT - Foundation for Science and Technology, under the project UIDB/04059/2020]

ORGANIZATION: CITCEM & FLUP

PARTNERSHIP: UP, CMVNG, CIPA e Paróquia da Afurada.

SPONSORS: Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema, DOT. Design e Comunicação.



REFERENCES
PRIMARY SOURCES
Arquivo da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Processo de Aluno Altino Maia. Escola Superior de Belas-Artes do Porto, 1942.

Processo de Aluno Altino Maia. Escola Superior de Belas-Artes do Porto, 1946, 3ª Secção, L. 27, No. 1016.

Documentação Particular
NETO, Francisco (antigo sacristão da paróquia de São Pedo da Afurada). Documentação particular.

REFERENCES
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GARRADAS, Cláudia (2008). A Colecção de Arte da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto - Gênese e História da uma Colecção Universitária. Porto: Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Dissertação de Mestrado.
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OLIVEIRA, Marta (2002). Elementos de formação urbana da Afurada. In Plano Pormenor da Afurada. Programa Gaia Pólis. [s.l]. [Consult. 30 nov. 2020]. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/70156
OLIVEIRA, Nuno (2013). CIPA. A memória de um lugar. (CIPA, Ed.) Iniciativa: APDL - Administração dos Portos do Douro e Leixões.
SÁ, Sérgio de Oliveira e (2015). Altino Maia: o pensar e o fazer do escultor. Breve e eventual contributo para uma análise à sua obra. Maia: Edição do Autor.

Créditos: todos os meios
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