Brasília, além do Plano Piloto: memórias das “cidades-satélites”

A exposição revela algumas imagens evocadas por memórias de moradores das “cidades-satélites” de Brasília. São cenas da vida em comunidade e do cotidiano que se desenrolava em espaços distantes do centro monumental.

Do Museu do Cerrado

Maria Fernanda Derntl

Esta exposição baseia-se num conjunto de 68 entrevistas realizadas pelo Programa de História Oral do Arquivo Público do Distrito Federal, entre 1995 e 2005, com moradores das “cidades-satélites” de Taguatinga, Núcleo Bandeirante e Ceilândia. Tais depoimentos permitem rever a história de Brasília a partir de perspectivas que não provém dos protagonistas usualmente considerados – políticos, técnicos e autoridades –, mas de migrantes que acompanharam a formação inicial daqueles núcleos urbanos.

Congresso Nacional em construção, de Arquivo NacionalMuseu do Cerrado

As formas escultóricas projetadas por Oscar Niemeyer e as amplas perspectivas do Plano Piloto traçado por Lucio Costa criaram imagens icônicas de Brasília. Mas, em depoimentos concedidos por migrantes que vivenciaram os primórdios da construção das cidades-satélites,...

Trabalhador em parada de ônibus na SQN 105 (ca. 1970), de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

a capital adquiriu significados muito distintos do que fora preconizado em pranchetas de arquitetos ou discursos políticos.

Trabalhadores em frente ao Supremo Tribunal Federal, no dia da inauguração de Brasília (1960-04-21), de Mário Fontenelle, Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

uma aventura, todo mundo incorporou o sonho do presidente” (Francisco Soares Pereira, 2004).

Cúpula do Congresso em construção, de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Nas memórias de migrantes que se mudaram para Brasília em busca de oportunidades de trabalho nas obras de construção, há fortes lembranças do clima de entusiasmo daquele período, mas também se expressam anseios e dificuldades do passado e do presente.

Desenhos de Lucio Costa apresentados no Relatório do Plano Piloto, de Brasília (1957), de COSTA, Lucio. “Relatório do Plano Piloto de Brasília [1957]”Museu do Cerrado

O plano traçado por Lucio Costa para a nova capital adotava conceitos e instrumentos de planejamento urbano e regional em voga naquele período. Baseava-se na criação de um núcleo central de traçado ordenado e com dimensões limitadas – o Plano Piloto – pressupondo, de modo implícito, o crescimento por meio de cidades-satélites também ordenadas e em meio a um cinturão verde.

As campanhas de divulgação das obras da nova capital e das oportunidades de trabalho que se abriam naquele ponto do Planalto Central incentivaram um intenso afluxo de migrantes, mas os alojamentos de construtoras eram reservados a operários solteiros. Na ausência de alojamentos oficiais para aqueles que viajavam com suas famílias, boa parte dos migrantes lembra que, de início, teve de improvisar sua moradia em áreas nos arredores do Plano Piloto.

Ocupação nas proximidades do Palácio da Alvorada, de Mário Fontenelle, Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

“a gente que chegava de fora cada um tomava um pedacinho de terreno e fazia um barraco, então chamava-se invasão, mas ninguém botava obstáculo”
(Edgar Galdino da Silva, 2000).

Plano do sistema de abastecimento de Brasília (ca. 1958), de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

A fixação de migrantes em assentamentos irregulares erguidos nos arredores do Plano Piloto logo se tornou descontrolada. A partir de 1958, iniciou-se uma política de transferência de moradores das chamadas “invasões” para núcleos situados de preferência fora de uma faixa sanitária definida pela bacia do Lago Paranoá. 

E as duas cidades cresceram juntas – o Plano Piloto: a cidade arquitetônica, linda, bonita, limpa, branca de linhas elegantes; Taguatinga: feia, suja, poeirenta, de barracos, mas lá em Taguatinga estavam realmente aqueles que estavam construindo Brasília” (Cid Ferreira Lopes Filho, 1997).

Mapa da ocupação urbana do DF em 2013, com a localização das “cidades-satélites’ criadas até o início dos anos 70. (2013), de Marcos Cambuí, Intervenção gráfica sobre mapa da SEGETH-GDFMuseu do Cerrado

As cidades-satélites eram, de início, desprovidas de infraestrutura urbana básica e ligavam-se ao centro por um sistema de transporte muito deficiente. Em 1958, estabeleceu-se a primeira delas, Taguatinga, seguida por Sobradinho (1959), Gama (1960), Guará (1968) e Ceilândia (1971). 

Taguatinga (1960), de Mário Fontenelle, Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

você já chegava sujo em qualquer lugar que você fosse, os ônibus velhos, os piores que tinham, eram jogados para cá [Ceilândia], ônibus velho furado e que entrava tufo de poeira dentro, em todo mundo” (Ilton Ferreira Mendes, 2002)

A denominação “cidade-satélite” foi estabelecida por lei de 1960, mas, em seu lugar, já em 1961, o DF foi subdividido em subprefeituras e, a partir de 1964, em regiões administrativas, ou RAs, distinguindo-se pela numeração atribuída a cada uma delas. Em 1998, um decreto do governo proibiu o uso da expressão “cidade-satélite” em documentos oficiais, numa tentativa de banir a denominação ainda corrente, porém vista como depreciativa.

Praça do Relógio, Taguatinga (2018), de Maria Fernanda DerntlMuseu do Cerrado

o conceito de satélite é a dependência de algo, como nós [em Taguatinga] não dependemos mais de ninguém, e já ajudamos, nós podemos dispensar até o termo de satélite” (Francisco Soares Pereira, 2004)

Ocupação irregular junto ao Núcleo Bandeirante conhecida como Vila IAPI (1969), de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

A aquisição legal de um lote em uma cidade-satélite era vista como uma conquista, mas podia implicar a desestruturação de valiosas redes de apoio mútuo antes criadas em ocupações irregulares.

“nós morávamos lá [na Vila IAPI], uns quatro colegas, todos pertinho, pegados assim e levamos castigo, nós queríamos ficar juntos aqui [em Ceilândia] e ficamos todos separados” (Francisco das Chagas Nogueira, 2002).

Núcleo Bandeirante, planta geral (1965), de Acervo Secretaria de Desenvolvimento Urbano e HabitaçãoMuseu do Cerrado

Mesmo com o estabelecimento de cidades-satélites, a sensação de precariedade e instabilidade permaneceu marcante em relatos sobre frequentes mudanças em razão da busca de locais de moradia e trabalho, das transferências forçadas ou da imposição de planos urbanísticos em locais já habitados.  

“tive que fazer meu barraco três vezes. Uma vez na invasão. Uma outra vez, que ele foi afastado para o local certo, para manter as ruas, para fazer as ruas direitinho. E posteriormente aqui para esse local onde estou [em Taguatinga], que precisou da área lá” (Vicente Paula Souza, 1995).

Trabalhadores em Brasília, de Mário Fontenelle, Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Os relatos referem-se a uma periferia em rápida transformação, sugerindo que seria, de um lado, tolerada ou negligenciada pelas autoridades e, de outro lado, objeto de medidas de controle e de tentativas de imposição de planos urbanísticos.

a gente trabalhava muito e mudava muito também. Na época a gente estava sempre mudando.” (Vicente Paulo de Souza,1995).

Transferência de moradores da vila Dó-ré-mi para Taguatinga (ca. 1965), de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Muitos moradores se recordam do dia em que se mudaram de áreas irregulares para uma cidade-satélite. Cada um dos barracos de madeira era desmontado e transportado por um caminhão da Novacap até o lote no novo núcleo, onde tinha de ser reconstruído para servir de moradia nos primeiros tempos. 

“Quando nós mudamos pra Ceilândia, aqui jogaram o [que havia no] caminhão, o meu mesmo, meu bagulho mesmo jogaram lá no chão, e [era] uma noite de chuva de maio, o dia e a noite de chuva de fazer medo" (Severino Bezerra da Silva, 2002).

Início da implantação de Ceilândia (ca. 1971), de Acervo pessoal de Maria de Lourdes AbadiaMuseu do Cerrado

No entender de Lucio Costa, a vegetação do cerrado serviria de pano de fundo para a Praça dos Três Poderes, de modo a expressar um contraste simbólico entre a civilização construída e o ambiente natural. Já nas memórias dos moradores das cidades-satélites, o cerrado designa o ambiente hostil que tiveram de enfrentar em sua vida inicial em espaços desprovidos de atributos urbanos.

Toque para explorar

quando tive a intenção de marcar a posição da Praça [dos Três Poderes], era, em parte, com o objetivo de acentuar o contraste da parte civilizada, do comando do País, com a natureza agreste do cerrado” (Lucio Costa, 1974)

Instalações provisórias em Brasília (DF) (1957), de Acervo Instituto Brasileiro de Geografia e EstatísticaMuseu do Cerrado

eles [as autoridades] nos jogaram no meio do cerrado, não tinha água, não tinha luz, não tinha condução, não tinha nada” (Hélio Dom Bosco Bonifácio, 2004).

Fragmento do Mapa do Distrito Federal (1963), de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Técnicos, administradores e autoridades da Novacap também deixaram seus depoimentos, nos quais explicam o modo como os planos urbanísticos das cidades-satélites foram concebidos e por vezes criticam as descontinuidades no seu planejamento. 

“no planejamento de Taguatinga não houve um plano prévio como houve de Ceilândia, por exemplo, que foi uma cidade que, quando foi criada, já tinha uma planta completa que é praticamente o que ela é hoje. [...]. Já o plano de Taguatinga foi sendo feito por justaposição, pedaços, tanto que ele não é muito igual, ele não guarda uma simetria...” (Cid Lopes Filho, 1997).

Escola em Taguatinga, de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Percebendo-se que haveria escasso auxílio oficial ou instituições de apoio, os laços de amizade e parentesco eram valorizados e necessários como meio de garantir a sobrevivência e enfrentar dificuldades. Em contraste com os padrões homogêneos e impessoais determinados por planos urbanísticos, os moradores relataram a persistência de práticas tradicionais de agrupamento e ocupação dos espaços.

“a gente morava em frente, terreno da minha sogra, grande, então ela me acampou como genro e os cunhados dela, também amigos como moradores dentro do pasto do terreno dela” (PRETO, 2000).

Torneira de água em Ceilândia, de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Várias entrevistadas recordaram-se dos locais onde se ia buscar água, lavar roupas ou tomar banho – bicas, torneiras, minas e córregos. Tais locais, situados muitas vezes à margem do traçado planejado, eram espaços de sociabilidade, sobretudo feminina, pois aquelas atividades ocupavam boa parte do tempo diário das mulheres.

“Só era trabalhar, buscar água, fazer comida”
(Ana Maria de Jesus, 2002).

Transferência de moradores da vila Dó-ré-mi para Taguatinga, de Torneira de água em CeilândiaMuseu do Cerrado

A ênfase dos vários relatos é colocada nos laços de solidariedade mais do que nos conflitos ou problemas, reforçando uma narrativa coproduzida sobre o valor da comunidade na criação do lugar.

“tinha união, você via alguém fazendo seu barraco, era (pá, pá, pá), aquele martelo batendo dia e noite, noite e dia, aquele que terminava primeiro chegava [para ajudar]” (Adair José de Lima, 2005).

Início da implantação de Ceilândia (ca. 1971), de Acervo pessoal de Maria de Lourdes AbadiaMuseu do Cerrado

Embora um código de ajuda mútua tenha contribuído para estruturar grupos e garantir sua sobrevivência, havia também moradores menos articulados a redes de apoio, o que poderia dificultar na construção de sua moradia na cidade-satélite.  

“Quando aquele morador tinha uma equipe grande com ele, às vezes, num dia ele conseguia levantar o barraco e cobrir, mas [...] algumas famílias por vários anos, tinha[m] seu barraquinho no chão batido” (Maria das Graças Pimentel, 2001).

Barraco em cidade-satélite, de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

 Os lotes eram concedidos pela Novacap em caráter provisório até que fosse feita a regularização definitiva, por isso a posse de um terreno tinha de ser assegurada pela sua ocupação. Os relatos de moradores das cidades-satélites aludem ao permanente risco de ter o terreno ou seu barraco ocupado por outras pessoas.

“fiz o começo do barraco, o esqueleto do barraco três vezes, quando chegava lá, tinha gente morando no barraco, cobria, tinha gente morando, aí [...] eu cerquei, fiz um cercado lá” (Otávio Macedo, 2004).

Unidade de Saúde em Taguatinga, de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Os equipamentos públicos, escassos nos primeiros tempos, eram marcos que davam nome a lugares e ruas, mas a paisagem urbana também ia sendo referenciada em locais mais prosaicos do cotidiano.

“os pontos de referência são o seguinte: o Café sem Troco, que ficou aqui atrás, a Passarela, a Caixa D’Água, que era um ponto de referência, Bar Estrela, Virgem da Vitória, Curva da Onça [...] Essa avenida de baixo, avenida do Samdu. É porque existia lá, antigamente existia o posto de saúde" (Vicente Paulo de Souza, 1995).

Capela de madeira em acampamento de obras, de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

Como parte da elaboração de um quadro de referências simbólicas locais, foram lembradas personalidades que teriam tido atuação ampla na construção e organização da vida de cada uma das comunidades, sobretudo os representantes de instituições religiosas e assistenciais.

“padre Roque foi uma figura expressiva no Núcleo Bandeirante e que era popular, a gente encontrava ele na rua a qualquer hora, não tinha negócio de padre recolhido à igreja...” (Carlito Alves Rodrigues, 2000).

Núcleo Bandeirante (ca. 1960), de Arquivo Público do Distrito FederalMuseu do Cerrado

As lembranças sobre a contribuição de cada uma das cidades-satélites para a história e a formação de Brasília levaram a falar na necessidade de provê-las de equipamentos urbanos e a reivindicar maior atenção política. As referências ao passado são também, afinal, um modo de expressar os problemas e preocupações do presente das comunidades.

“as autoridades precisavam e precisam ainda voltar as vistas para o Núcleo Bandeirante, que sendo a cidade pioneira merece um pouco mais de carinho” (Waldemar Alves de Magalhães, 2000).

Grafite em Ceilândia, de Juliana TorresMuseu do Cerrado

Na metrópole contemporânea, emergem novas formas de vivência e de representação da capital, nas quais tradições do grupo inicial de migrantes se combinam com referências culturais de ampla circulação. Mais do que apenas um conjunto de monumentos e edifícios modernos, Brasília é também uma construção simbólica em permanente elaboração por grupos e indivíduos diversos.

Créditos: história

Museu do Cerrado
Curadoria: Rosângela Azevedo Corrêa
 
Texto: Maria Fernanda Derntl
Professora e pesquisadora da FAU-UnB, líder do grupo de pesquisa Capital e Periferia: dinâmicas urbanas de Brasília (CNPq). Suas publicações mais recentes incluem os artigos “Dos espaços modernistas aos lugares da comunidade: memórias da construção das cidades-satélites de Brasília, https://orcid.org/0000-0001-8083-1274” e “Brasília e suas unidades rurais, http://orcid.org/0000-0001-8083-1274”, contemplado com o X Prêmio Milton Santos da ANPUR em 2021.

Fotos e imagens extraídas dos acervos: Arquivo Nacional (AN), Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF), SEGETH-GDF, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e acervos pessoais de Maria de Lourdes Abadia e Juliana Torres. 


Depoimentos orais citados: Hélio Dom Bosco Bonifácio, Ana Maria de Jesus, Adair José de de Lima, Cid Ferreira Lopes Filho, Otávio Felix de Macedo, Waldemar Alves de Magalhães, Ilton Ferreira Mendes, Francisco Chagas Nogueira, Francisco Soares Pereira, Maria das Graças Pimentel, Sebastião Teixeira Preto, Carlito Alves Rodrigues, Edgar Galdino da Silva, Severino Bezerra da Silva, Francisco Soares Pereira e Vicente Paulo de Souza (Depoimentos coletados pelo Programa de História Oral do Arquivo Público do Distrito Federal entre 1995 e 2005).

Vídeo: trecho da obra Alvenaria, criado e realizado pelo Teatro do Concreto, para o evento 'Noite das Ideias 2021' da Embaixada da França no Brasil

Foto de Capa: Cidade Livre, depois Núcleo Bandeirante (ca. 1957-60), de Thomas Farkas, Arquivo Público do Distrito Federal. 
 

Créditos: todas as mídias
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