A presença negra em Campinas é de grande importância, resquício de um passado escravista cafeicultor que transformou o município no principal produtor paulista desde 1850. Passados mais de 200 anos da abolição, esta exposição pretende propor, a partir de duas temáticas, uma reflexão crítica sobre elementos imateriais de natureza afrodescendente que se materializam em distintos espaços campineiros.
Religiosidade
Os grupos negros sempre buscaram meios para manterem vivas suas tradições, e a religiosidade sincrética foi uma das vias mais eficazes. Por vias institucionais ou não, os negros se organizaram e criaram espaços próprios como meios de resistência e núcleos de auxílio mútuo, ainda no contexto escravista do século XIX. Desta forma, procura-se mostrar a articulação presente e ativa desses indivíduos em seu cotidiano, especialmente na cidade de Campinas.
A religião era muito presente na sociedade do século XIX. As irmandades religiosas leigas eram as principais formas institucionais representantes do catolicismo. Por meio delas organizavam-se as devoções em torno de um santo, promoviam-se as festas durante o ano e um enterro decente era assegurado aos seus integrantes.
Muito difundidas na sociedade, as irmandades eram hierarquizadas, havendo aquelas associações destinadas às elites e outras de cunho popular e/ou voltadas aos grupos negros. Isso pode ser visto no caso da irmandade campineira do Santíssimo Sacramento, a qual não aceitava escravos e tinha mensalidades altas para que apenas os membros elitizados da sociedade pudessem participar.
A população negra organizava sua religiosidade também por meios institucionais, sobretudo em irmandades, fortalecendo devoções a santos negros, como a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário. No caso de Campinas, a participação negra era atuante na vida religiosa.
A irmandade de São Benedito, por exemplo, era bastante ativa, especialmente na promoção de festas. A própria construção da capela destinada à irmandade, inaugurada em 1885, foi obra de um ex-escravo, Tito de Camargo Andrade (Mestre Tito), o qual organizou a instituição para angariar fundos por meio de esmolas.
Inventário de Tito de Camargo Andrade (1882), de Juízo Municipal da cidade de CampinasCentro de Memória-Unicamp
No século XIX, era comum a crença da salvação da alma se a pessoa fosse enterrada nas proximidades de espaços santos (como cemitérios consagrados e até mesmo dentro das igrejas). A igreja de São Benedito de Campinas foi construída próxima do antigo Cemitério dos Cativos, pois era um espaço importante para a religiosidade negra, aumentando a ideia de que seus antepassados seriam abençoados na vida pós-morte.
Outro espaço institucional caracterizado por uma devoção negra é a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Construída no início do século XIX, teve grande participação na organização religiosa da cidade, servindo de igreja matriz em momentos específicos. Ela foi demolida em 1956, graças ao Plano de Melhoramentos Urbanos de Francisco Prestes Maia, datado de 1938, que alargada várias vias, entre elas a Avenida Francisco Glicério.
Largo do Rosário (1900), de P.D.Centro de Memória-Unicamp
A Igreja do Rosário, segundo o pesquisador Celso Maria de Mello Pupo (1900-2003), foi levantada com participação das esmolas de negros cativos. Estas demonstram o interesse deste grupo em alicerçar crenças às quais existia um vínculo identitário, como a Virgem do Rosário, devoção vinculada à conquista da África.
Demolição da Igreja do Rosário (1956-05/1956-09), de Aristides Pedro da SilvaCentro de Memória-Unicamp
Dentro das vias institucionais, como apresentado na irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a religiosidade negra se manifestava de modo que tangenciava a ortodoxia clerical. Muitas vezes, as raízes africanas apareciam por meio de festejos próprios, como as congadas.
Organizar e realizar em pequenas festas… (1967), de Geraldo Sesso JuniorCentro de Memória-Unicamp
As permissões para a realização dessas festas revelam uma complexa rede de interesses e paternalismo por parte dos senhores, mas também apresentam a ação dos negros em garantir e expressar algumas tradições
Contudo, a tradição negra sofria retrações, principalmente quando a Igreja abominava tais práticas, como o candomblé, consideradas heréticas e até demoníacas.
Havia uma histeria em relação às religiosidades de origem africana, muito policiadas pelas autoridades leigas e clericais. O medo provocava medidas coercitivas que visavam restringi-las e apagá-las.
Planta de Campinas (1878), de Julio Mariano JuniorCentro de Memória-Unicamp
As noites de São João eram também festividades que contavam com uma presença grande dos escravos e libertos. As festas cristãs representavam um momento em que os senhores permitiam a seus escravos uma folga de seus afazeres, como modo de cativá-los a nova religião imposta, além de se conceder alforrias nessas épocas.
Entretanto, como é possível ver no trecho, os escravos se apropriavam desses momentos para expressar suas tradições. Com uma mescla de traços entre o catolicismo e as religiões africanas, esses momentos do calendário cristão se constituem como exemplos de resistência da cultura que as elites procuravam apagar, nos quais os escravos buscavam conservar práticas dos antepassados em um ambiente hostil e prosélito.
Memória e Resistência
O passado escravista brasileiro demarcava lugares sociais específicos para as mulheres negras, seja no cativeiro, seja nos anos posteriores a 1888. Um desses lugares era o de escrava doméstica, transformada na empregada doméstica, e que tinha como função, além do limpar, cozinhar e lavar, o cuidar dos bebês e das crianças brancas, filhas de seus senhores e patrões
Essas figuras eram comumente chamadas de “Mãe Preta”, em parte devido à relação de afeto que construíam dia a dia com seus sinhôzinhos e, em parte, também, para demarcar a diferença social que existia entre a criança e essa mulher preta que a assistia. Ela não era a mãe de fato, mas a escrava que amparava os pequenos em todas as suas necessidades – ou seja, alguém que não é da família, porque sequer é considerada como um sujeito.
Amanhã é o dia da Mãe Preta (1928), de Não identificadoCentro de Memória-Unicamp
Assim, além de amas de leite, as mães pretas eram quem ensinavam as primeiras lições sobre a vida para as crianças brancas. Porém, para isso, elas acabavam deixando seus próprios filhos, as crianças pretas a quem davam à luz, sob o cuidado de outras mulheres – geralmente as escravas mais velhas e/ou doentes que ficavam na senzala. Portanto, a memória das mães pretas carregava uma dose de dor. A dor dessa mulher que não podia dedicar seus cuidados e carinhos aos seus filhos, pois era responsável pelos filhos de seus senhores – que seriam, eles mesmos, seus futuros donos.
O dia 28 de setembro é o dia da aprovação da Lei do Ventre Livre (1871). Ela foi a lei que libertou o ventre das escravizadas. Ou seja, a liberdade das futuras gerações começou, efetivamente, nas mães pretas.
Mãi Preta, de Não identificadoCentro de Memória-Unicamp
Retrato da escrava Izabel (1900), de Sophian NieblerCentro de Memória-Unicamp
Porém, ao longo do século XX, essa figura foi apropriada pelo movimento negro brasileiro e ressignificada como um símbolo de força e digna de homenagens.
Em 1984, foi inaugurado em Campinas um monumento em homenagem à Mãe Preta, uma réplica do que existe no Largo do Paissandú, em São Paulo. A Federação Paulista dos Homens de Cor, importante símbolo do associativismo negro na cidade, foi responsável pelos esforços de construção da escultura.
O local escolhido para o monumento à Mãe Preta na cidade de Campinas foi o largo em frente à Igreja de São Benedito, no centro. Lá ficava o antigo Cemitério dos Cativos, onde os escravos da região eram sepultados até o final do século XIX. Ou seja, é um lugar onde pulsam as memórias da população negra campineira. Memórias de dor, mas também de força e resistência.
A história da escravidão também se fez em Campinas (1984), de Ismael PfeiferCentro de Memória-Unicamp
Direção Geral
Prof. Dr. André Luiz Paolilo
Curadoria
João Lucas Moura e Souza
Patrícia Oliveira
Textos
João Lucas Moura e Souza
Patrícia Oliveira
João Paulo Berto
Revisão
Ana Cláudia Cermaria
Realização
Centro de Memória-UNICAMP
Novembro de 2018
A mostra é fruto das atividades de Estágio Supervisionado do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – Unicamp, sob orientação do Prof. Dr. Aldair Carlos Rodrigues.
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