O relacionamento de Frida Kahlo com o próprio corpo

Tentamos entender como a doença crônica da artista afetou o trabalho dela

Do Google Arts & Culture

Words by Rebecca Fulleylove

Frida Kahlo (1913), de UnknownMuseo Frida Kahlo

Ao longo de toda a vida, Frida Kahlo sofreu de uma doença crônica grave que a afetou de várias maneiras. A história e os detalhes do sofrimento pelo qual passou muitas vezes romantizam a dor da artista. Isso só fortalece o mito que se criou em volta dela, em vez de haver uma compreensão do impacto físico real que isso causou no trabalho de Frida e como essa agonia se manifestou nas pinturas dela.

Ao analisar os eventos que ocorreram na vida de Frida com a ajuda de imagens de arquivo e das obras de arte dela, podemos começar a entender a relação que a pintora teve com o próprio corpo e as formas em que a carreira artística foi estimulada pelas aflições vividas.

Frida Kahlo, 15 de junho de 1919 (1919), de Guillermo KahloMuseo Frida Kahlo

Muitos pesquisadores acreditam que Frida Kahlo nasceu com espinha bífida, uma condição que afeta o desenvolvimento da coluna vertebral. A doença foi a primeira de muitas enfermidades que complicariam ainda mais a dor e os problemas que ela teve posteriormente na vida.

Aos seis anos, Frida foi diagnosticada com poliomielite. Isso fez com que a perna direita ficasse mais fina do que a esquerda, e a diminuição da circulação na perna causou dor crônica durante toda a vida da artista. A doença também a forçou a ficar isolada dos colegas, porque precisou adiar o início dos estudos por meses.

Embora a experiência a tenha deixado introvertida, ela se tornou a favorita do pai, Guillermo Kahlo. Durante esse período, ele a ensinou literatura, natureza e filosofia. Quando ela estava bem o suficiente, o pai a incentivava a praticar esportes para recuperar a força, como luta livre e boxe, embora esses esportes fossem considerados inadequados para meninas na época. Guillermo também ensinou a artista sobre fotografia, e ela começou a ajudá-lo a retocar, revelar e colorir fotos.

Os efeitos duradouros da poliomielite fizeram com que Frida usasse saias longas na idade adulta para cobrir a perna, cuja aparência ela detestava. Em novembro de 1938, por exemplo, a artista fez a primeira exposição, em Nova York. Ao olhar para a grande quantidade de saias que ela se retratava usando, ela disse: “Preciso ter saias longas agora que minha perna doente está tão feia”.

Frida Kahlo pintando "Retrato de Família" (1950-1951), de Juan GuzmánFundación Televisa Collection and Archive

Aos 18 anos de idade, em 17 de setembro de 1925, Frida e o namorado, Alejandro Gómez Arias, voltavam da escola para casa quando o ônibus de madeira em que se encontravam colidiu com um bonde de metal. Várias pessoas morreram, e a artista sofreu ferimentos quase fatais depois de um corrimão de ferro ter perfurado sua pélvis, fraturando o osso. Ela também fraturou várias costelas, as pernas e a clavícula.

Após o acidente, ela passou um mês no hospital e mais dois meses se recuperando em casa. Embora tenha tentado voltar à vida normal, Kahlo continuou a sentir fadiga e dor nas costas. Após radiografias, descobriu-se que o acidente também havia deslocado três vértebras. O tratamento incluiu o uso de um espartilho de gesso, que a deixou confinada à cama como parte da recuperação.

Antes do acidente, Frida sonhava em se tornar médica. Embora ela tenha sido obrigada a abandonar esses planos, os pais a incentivaram a pintar enquanto repousava na cama, e assim ela descobriu uma nova paixão.

Fotografia de Frida Kahlo e Diego Rivera na cama em Coyoacán, México (between 1942 and 1945), de Chester DaleArchives of American Art, Smithsonian Institution

A artista tinha um cavalete feito especialmente para que ela pudesse pintar na cama, e um espelho foi colocado em cima do cavalete para que ela pudesse se ver. Além de pintar retratos das irmãs e de colegas da escola, com frequência ela voltava os olhos para si mesma e certa vez disse: “Pinto a mim mesma porque estou quase sempre sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor”.

A pintura tornou-se uma maneira dela explorar questões de identidade e existência em um novo patamar. Refletindo sobre essa época, a artista disse que o acidente e o período de recuperação isolada fizeram com que ela quisesse pintar as coisas "da forma como as via com meus próprios olhos e nada mais". Muitos dos quadros pintados por Frida nesse período foram inspirados em artistas europeus, especialmente mestres da Renascença, como Sandro Botticelli e Bronzino, assim como em movimentos de vanguarda, como o cubismo e o surrealismo.

Nos anos seguintes ao acidente, Frida continuou sofrendo com dores severas duradouras e passou por 32 cirurgias no total, algumas das quais foram desastrosas. O acidente e as operações subsequentes tiveram um impacto enorme na fertilidade, e ela sofreu vários abortos espontâneos.

Um dos mais difíceis foi em 1932, durante época em que Frida morou em Detroit com o marido, Diego Rivera, onde ele foi contratado para pintar vários murais. Ela descobriu a gravidez enquanto estava lá e decidiu fazer um aborto, mas a medicação usada foi ineficaz. A artista era ambivalente em relação a ter filhos e já havia passado por um aborto no início do casamento, mas decidiu continuar com a gravidez. No mês seguinte, ela sofreu um aborto espontâneo, que causou uma hemorragia e fez com que precisasse ficar hospitalizada por duas semanas.

O quadro Hospital Henry Ford, de 1932, foi diretamente inspirado por essa experiência e retrata a artista sangrando em uma cama enorme. A barriga dela ainda estava inchada, e seis elementos diferentes, incluindo um feto do sexo masculino e um molde ortopédico da zona pélvica, aparecem em torno dela presos à mão por fitas vermelhas, como se fossem cordões umbilicais. Esse quadro é um dos vários que tratam das lutas pessoais de Frida relacionadas à fertilidade e comunicam os sentimentos conflitantes dela de querer filhos, o desejo de ter uma família com Diego e as limitações do próprio corpo.

Imagem ausente

Uma das muitas cirurgias pelas quais Frida passou foi na coluna vertebral. A operação a deixou acamada e a forçou a usar um espartilho metálico, que ajudava a aliviar a dor intensa e constante que sentia.

A Coluna Partida, de 1944, foi pintada logo após a operação e exibe a artista em pé no meio de uma paisagem árida e rachada. O tronco dela está envolto por faixas metálicas revestidas de pano para evitar que o corpo caísse, o que é enfatizado pela coluna rachada em vários lugares. Embora o rosto esteja coberto por lágrimas na pintura, isso não é um retrato de dor, mas de força, com o olhar desafiador penetrando no espectador. Essa atitude determinada permitiu que Frida continuasse pintando mesmo nos momentos mais agonizantes.

Frida Kahlo posa com espartilho ortopédico (1950-1951), de Juan GuzmánFundación Televisa Collection and Archive

A artista continuou a usar espartilhos de gesso pela maior parte da vida, mas começou a pintar murais complexos neles, transformando a si mesma em uma tela. Tão detalhados quanto os quadros, os espartilhos pintados eram frequentemente cobertos com retalhos de tecido estampado com desenhos de tigres, macacos, pássaros e bondes, como aquele envolvido no acidente que ela sofreu. Os espartilhos permanecem na casa de Frida, agora convertida em um museu dedicado a ela, lembrando-nos da personalidade única da artista.

Retrato de Frida Kahlo no pátio da Casa Azul em Coyoacán, México (195-?), de Florence ArquinArchives of American Art, Smithsonian Institution

Para lidar com a dor diária, Frida recorria a uma combinação de medicamentos fortes com e sem prescrição, além do consumo de álcool. O sofrimento da artista era tão extremo que não se manifestava apenas fisicamente, mas também mental e emocionalmente. Pintar se tornou um escape, uma maneira de se separar da dor e dos fatores estressantes da vida e de criar representações das experiências traumáticas pelas quais passou.

O impacto da doença permitiu que a artista explorasse as próprias ideias de feminismo e feminilidade e desenvolvesse uma filosofia pessoal a partir de uma perspectiva diferente dos pares dela. É importante não identificar Frida pela dor, mas celebrar as maneiras como ela usou as próprias aflições para entender a vida e construir uma carreira de artista.
 

Créditos: todas as mídias
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